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Gente que Marca

Só existo devido a um erro geográfico

By 16 Dezembro, 20164.822 Comments

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Cheguei com intenção de contar a história da contadora de histórias, mas Sofia trocou-me as voltas.

Foi quase como se da folha branca saíssem letras, palavras, narrações na primeira pessoa de quem prende o olhar de tantas crianças e adultos.

Na esplanada, na manhã ventosa daquele sábado, o vento não assustava e de vez em quando brincava com o cabelo louro da neta de Gunther Maul, o primeiro a chegar à ilha com aquele sobrenome.

A mulher que contou a história da sua história não é mais a menina diferente de olhos verde camaleão, sardas e cabelo muito claro que entrou num colégio madeirense nos anos 70 e que era observada por crianças de cabelo castanho e olhos escuros.

O avô paterno não gostava do frio e começou a mandar currículos para lugares quentes, recebendo uma resposta da Nova Zelândia, para dali a seis meses e outra da Madeira, com efeitos imediatos.

Com antecedentes judeus e em pleno pós-primeira guerra mundial, a opção foi sair logo de Hamburgo.

Depressa se integrou na comunidade estrangeira residente na ilha, passando a ser conhecido por Gerry, o termo depreciativo que usavam na I Guerra Mundial para chamar aos alemães. Nessa altura, conta-me Sofia com os olhos verde camaleão quase fechados por causa da claridade do meio dia, deixou de falar a língua materna e não falava da família. Deliberadamente.

Um dia, estava o jovem Gunther no então Clube inglês, actual Quinta Magnólia, quando viu uma jovem britânica a jogar ténis. Do pai, não reza a história, mas a mãe era financeiramente independente e tinham por hábito passar férias em sítios quentes. Como todas as histórias de amor, esta também mete cartas e juras eternas. E com a ajuda da sua ama, que ainda mantinha quando era adolescente, correspondeu-se com Gunther durante quatro penosos anos. No dia em que a jovem fez 21 anos foi buscá-la com o dinheiro que poupou.

Casaram quatro dias depois numa capela em Londres. Um desgosto para a mãe dela, pois além de alemão, o homem era pobre e sem família. Ela foi deserdada.

Nasceram dois filhos dessa relação. Nessa altura, já pestanejo de tão seduzida que estou pela história e adivinho que falta pouco para o coração palpitar com o desenrolar do enredo. Sofia bebe um pouco do chá, como se fosse virar a página.

Do lado da mãe da contadora de histórias a história não é mais pobre. Havia um bisavô californiano, de antepassados suecos, tornando-se leiloeiro quando regressou ao país da família. Vasculhava baús e celeiros, onde havia velharias e vendia-as pelo melhor preço, depois de restauradas.

Um dia, um médico disse-lhe para ir a um sítio quente passar férias e alguém lhe relatou umas férias maravilhosas passadas em Maiorca. Entra na agência de viagens e não conseguiu passar da primeira sílaba. Quando disse «Ma… ma…ma…» a agente logo ajudou: Madeira!

De sorriso trocista, a mulher com um brinco diferente em cada orelha, sentenciou: «eu só existo devido a um erro geográfico da agente de viagens». Veio cá de férias, comprou casa, foi trazendo a família e depois a neta conheceu o pai de Sofia. A mãe, sueca, casou com um filho de um alemão e hoje têm quatro netos muçulmanos. Mas já lá vamos.

Voltemos a Sofia. A miúda que queria ser bióloga e descobrir mais do que o Museu de História Natural onde o avô esteve tantos anos a receber milhares de crianças. Os anos passaram, a contadora de histórias, protestante e aluna de um colégio católico, enriqueceu a sua vida com episódios marcantes. Ela e o irmão seguiram as pisadas das famílias e enamoraram-se de pessoas diferentes. Como mandava a tradição lá em casa. Ela, com um senegalês, o irmão, com uma malaia. De tal forma que o pai graceja que se lhe tivessem dito há quinze anos que os quatro netos seriam muçulmanos teria irrompido numa gargalhada. O irmão converteu-se nas catacumbas de uma livraria londrina e os três filhos são primos da sua filha, uma mistura encantadora de duas raças que não podia ter dado mais certo. Bali é linda, doce e muito, mas mesmo muito extrovertida a partir do vigésimo segundo. Não é difícil adivinhar de quem são os seus genes.

Foi para Coimbra estudar e ser intérprete. O plano era trabalhar quatro meses por ano e nos outros ser bióloga marinha, ainda que soubesse que teria de se formar em ambas as coisas. Mas garra não lhe faltava. Convidaram-na para fazer trabalhos que a fizeram ficar fisicamente doente. «Saiam da minha boca palavras com as quais não concordava, enquanto traduzia as ideias e desisti». Os pais separaram-se, para ajudar no turbilhão de emoções e depois, a cereja no topo do bolo, foi o medo de adormecer, porque fazia parte da tripulação da ambulância da Cruz Vermelha e tinha frequentemente pesadelos com os casos que transportava.

Voltou para a Madeira. Viu anúncios de emprego. Até de condutora de máquinas pesadas, tal era o desespero de encontrar qualquer coisa. Tropeçou na terapia da fala. Mais um casamento, desta vez entre a linguística e o cérebro, que a fascinavam de tal forma que não hesitou em fazer a formação. O negócio com o pai foi ter financiamento para o curso desde que as notas não fossem inferiores a 16 valores. Valeu a teimosia da aluna, que quando terminou o bacharelato começou a trabalhar numa escola de surdos, onde a proposta foi trabalhar bilingue: a primeira língua seria a gestual e a segunda, o português, escrito ou falado. Foi pioneira em Portugal, com uma colega que continua a fazer o mesmo.

Recebeu, naturalmente, várias propostas de trabalho e durante anos lecionou em muitas das escolas bilingues da zona do Estoril. Ganhava bem. Conheceu o pai da sua filha, engravidou e não regressou. Sofia tinha por hábito oferecer uma história no final das sessões com os alunos e um dia foi convidada para ouvir contar histórias na biblioteca de Oeiras. Não hesitou. Encantou-se por uma formação de leitura em voz alta e a sua vida mudou. Uma vez mais. Juntou-se a um grupo entretanto formado de contadores de histórias que conhecemos como “Os Contabandistas”. Sem “R”, apesar de o nosso cérebro corrigir automaticamente por achar que é um erro ortográfico. Foi a explicação que recebi depois de me ter enganado, mas ela estava pacientemente à espera que esse momento chegasse. Já lhe aconteceu dezenas de vezes.

O movimento foi crescendo. Começaram a promover eventos de contos. Voltou para a Madeira definitivamente em Fevereiro de 2015, mais de dois anos depois de ter contado uma história em agradecimento ao grupo que em Setembro de 2012 foi com ela para a serra plantar dragoeiros depois dos fogos.

A vida trocou-lhe as voltas e separou-se em 2014.

Voltou à ilha e abraçou as histórias como quem abraça um urso de peluche e até hoje, reconhece, tudo descamba depois. Sempre. Porque uma das partes mais importantes do contador é escutar e consegue perceber onde quer o público ir.

Há uma linguagem própria e colectiva que é seguida por todos. Não costuma ver pessoas a bocejar ou a olhar para o telemóvel, cativa-os com os olhos azuis e o ar descontraído. Só conta o que lhe toca. O que lhe mexe com a alma. Tem de ter a ver com liberdade. Gosta de alternar entre contos tradicionais, histórias de vida e contos de autor. Adapta e traduz algumas coisas. Enriquece-as com o seu toque pessoal, mas diz sempre de onde veio o que conta e quem a escreveu. Acaba por enfeitar as palavras como quem enfeita uma árvore de Natal, com carinho e um cuidado extremo, para que quem ouve possa construir as suas próprias pontes para o fio da meada que desenrola.

Quis saber quando é que sentiu que aquela era a sua praia, aquela coisa que enche o coração de palavras que não se descrevem. Foi com adultos. As crianças têm a memória muito viva, mas não são tão exigentes. Por isso as abandonam no primeiro ciclo à sua própria leitura. Sofia explica: «quando estamos na creche, as educadoras contam-nos histórias, mas quando chegamos ao básico, os nossos pais acham que, como já sabemos ler, podemos encantar-nos sozinhos». E completa, com ar sério: «durante anos não consegui sequer ouvir falar brasileiro, porque tenho a memória dos meus pais estarem a ver a novela “Gabriela” e nós esperávamos, eu e o meu irmão, no cimo das escadas, à espera que nos contassem as histórias de que gostávamos».

Essa é a razão pela qual gosta de histórias de vida, o motivo que a leva passar esse património. Só saberemos para onde vamos, se soubermos de onde viemos. Por enquanto, sabemos que o seu sorriso se passeia por vários cantos da cidade. Se quiser ouvir uma história, sente-se confortavelmente e aprecie a loura de olhos azuis que nasceu na Madeira, a ilha que adora, por um mero erro geográfico que agradece.

 

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