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Gente que Marca

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“Estraguei tudo quando fui para a tropa”

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É provavelmente um dos mais antigos autarcas atualmente em funções na Madeira. Bem disposto, Carlos Teles, nascido na freguesia dos Prazeres, concelho da Calheta, entrou pela primeira vez na Câmara Municipal em 1993, para trabalhar com Manuel Baeta. Mas no edifício vermelho que se ergue imponente na margem da ribeira, já tinha entrado de calça curta, quando ali fez o 2º ciclo, curiosamente na mesma sala onde hoje trabalha. Os primeiros anos tinham sido no Externato São Francisco Sales, uma instituição privada na sua freguesia.

A conversa, que correu na altura do aniversário do concelho que dirige desde 2013, serviu sobretudo para conhecer a pessoa que no 10º ano foi estudar para o Funchal, no Girassol, na área de Letras. O importante era mesmo fugir à Matemática, mas no seu caso até era por gostar muito de História. Por causa do secundário, teve de ir viver com a avó para Câmara de Lobos. Era mais perto da grande cidade dos anos 80 e continuava no seio familiar, onde também estavam outros primos.

Às sextas, entrava no autocarro para as quatro penosas horas nas curvas intermináveis da costa sul até chegar a casa. Parava em todos os locais, havia desdobramento. Hoje, sorri ao olhar para esse tempo, o tempo em que teve um professor de Antropologia Cultural que lhe pediu que repetisse o sítio de origem, porque não entendera. Então o aluno lá teve de improvisar umas noções de geografia a partir da Calheta, o único nome que dizia alguma coisa ao docente. “Então eu expliquei que depois da Calheta vinha o Estreito da Calheta e que depois vinha a freguesia dos Prazeres. Achou tanta piada que fiquei conhecido pelo ‘Prazeres’ durante todo o 10º ano”.

Foi nessa altura da sua vida que vieram as primeiras festas de garagem, a ansiedade pelos “slows” para dançar com uma miúda gira e as primeiras tropelias, próprias de rapazes da sua idade.

 

Os 15 meses de tropa

A meio do 12º ano mudou para a Francisco Franco. Transferiram duas turmas, o Girassol estava pequeno demais. Encontrou uma escola grande em cidade grande, mais um choque na vida do adolescente que desde sempre frequentara a praia no Jardim do Mar, com a família. Desciam as escadas que rendilhavam a freguesia e alcançavam a zona de grandes rochas onde hoje termina a promenade que tanto atrai turistas e locais.

O Jardim do Mar é, de resto, uma das oito freguesias do concelho mais extenso da Madeira. O concelho que deixou de ver amiúde quando a tropa o colocou na Escola de Sargentos, em Mafra, no Inverno de 1988. “Aí é que estraguei tudo”, diz, deixando uma gargalhada espontânea espalhar-se pela sala. No quartel aproveitou, como quase todos os jovens faziam, para tirar carta de condução.  Mas antes disso, teve a experiencia de andar de avião pela primeira vez. Ele e mais 39 madeirenses foram enfiados na TAP a caminho de Lisboa, onde tiveram literalmente de se desenrascar para ir ter a Mafra. Não sabia minimamente o que ia encontrar.

Ainda “apanhou” 15 meses de farda e nos primeiros seis, quando estava no continente, habituou-se a ver sair às sextas-feiras os do lado de lá e ficava, com os outros das ilhas, dentro do quartel. Mas isso era quando não se aventuravam a sair em direção à praia, na Ericeira, para onde chegaram a ir a pé, ao longo de dez quilómetros. Como tantos outros jovens, guarda boas recordações da vida militar e, no seu caso, até fez um compadre.

 

O primeiro carro era uma bomba

Os estudos ficaram, pois, pelo 12º ano. Quando a pessoa se habitua a ter o seu dinheirinho, diz, é difícil voltar a estudar. Por isso diz, a brincar, sempre bem disposto, “estraguei tudo quando fui para a tropa”. O primeiro emprego foi no Clube dos Prazeres, onde servia ao balcão. Depois, o pai comprou “O Tosco”, para onde foi trabalhar, com a mãe. Havia só mais uma empregada. As coisas correram bem. Foi com o ordenado que comprou o seu primeiro carro, um Citroën AX GT vermelho. Uma bomba…

Talvez tivesse sido por isso que foi para a Escola de Condução da Calheta, para os serviços administrativos. Depois de um ano, fez um concurso para o Banco Totta & Açores e voltou ao Funchal. Voltou a casa da avó, durante uns meses e foi “caçado” pelo Banco Espírito Santo, que lhe ofereceu o lugar de prospetor para a Calheta. Uma categoria que hoje em dia não existe, como também não existe o banco.

Casou. Assentou arraiais no concelho onde nasceu, “tratávamos das contas de muitas pessoas, quem não podia levantar dinheiro no banco, esperava que o banco fosse a elas”. Eram pessoas a quem se confiavam depósitos e levantamentos, pessoas respeitadas pelos clientes, eram a única ligação que muitas delas tinham ao balcão.

Depois de ir para a autarquia, um dia passou pela Ponta do Pargo e uma senhora aproximou-se a pedir satisfações: “Então, o senhor nunca mais apareceu?” Teve de lhe contar que a vida tinha tomado outro rumo, apesar de hoje ainda ser bancário. Pertence aos quadros do Novo Banco. Que não existia na sua altura. Como também já não existe o cargo que exercia…

Passou pelo Parlamento madeirense, num mandato curto. Aprendeu a importância do papel de autarca. E sorri ao dizê-lo. Com o passar dos anos, aprendeu também a valorizar o tempo que passa com a família, mas quando tira férias vai sempre de olho clínico a aprender tudo o que possa para aplicar no seu concelho. Tem é de sair da Madeira. Porque se estiver aqui, batem-lhe à porta, seja de dia, de noite, ao fim de semana, o que for. Mas não se importa, nunca fez outra coisa na vida que não fosse atender pessoas e gosta disso.

Faz um balanço positivo dos anos que ficaram para trás e aconselha sempre quem entra nas suas equipas que “no dia em que entrarem na política têm de estar preparados para sair”. Porque “isto não é profissão, estamos aqui de passagem”.

Um quarto de século na Câmara

Quem está numa autarquia desde os 25 anos, tendo sido um dos autarcas mais jovens do país, sabe do que fala. Aprendeu muito com o pai, de outro partido, com quem falou antes de aceitar o convite. Gostava do projeto e foi isso que o fez aceitar, era um desafio diferente. Da altura, retém as palavras do pai: “és maior e vacinado, casado e fazes o que a tua consciência mandar”.

Foi com o pai que aprendeu o que era a democracia e era a ele que recorria quando precisava de conselhos mais importantes, apesar de ter um respeito e admiração enormes por Manuel Baeta, com quem trabalhou 20 anos. Aprendeu muito com o ex-presidente.

Está longe de ter o concelho que quer. Ainda se pode melhorar muito, apesar de as grandes obras estarem feitas. A Calheta está um mimo, é um facto. Há que ter cuidado para fazer daquele município uma referência a nível turístico, sem estragar a agricultura, que tem um papel importantíssimo no desenvolvimento do concelho. “Somos abençoados por um excelente clima”.

Carlos Teles quer realizar o sonho de ocupar um edifício de raiz para os serviços da autarquia. Os funcionários, os munícipes e os investidores merecem ser recebidos de outra forma, até porque a Calheta é neste momento o segundo concelho com mais camas de alojamento local em toda a Região. Os números, a rondar os 500 registos, falam por si e a procura tem aumentado a olhos vistos num concelho especial, que comemora 516 anos este fim de semana.

 

Idalina Perestrelo diz que pinheiro de plástico não é ambientalista

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Quando nos sentámos na pequena sala onde os raios de sol entravam no final da tarde de Outono, a conversa foi para uma direcção diferente daquela que eu pensava. Saí dali com vontade de deitar fora a árvore de Natal de plástico que armo religiosamente há vinte anos e arranjar um pinheiro natural, medida muito mais ambientalista do que eu pensava.

Idalina Perestrelo é a mulher que dá bom ambiente à Câmara Municipal do Funchal. No seu segundo mandato na equipa liderada por Paulo Cafôfo, a ambientalista que abomina pinheiros falsos é uma cara conhecida desde que aos 21 anos chegou a presidente da Associação Ambientalista Quercus, seis anos depois de ali ter entrado. Hélder Spínola, a sua cara metade, foi mesmo presidente a nível nacional da associação ambientalista que deu tantas dores de cabeça a governos e câmaras. Além do amor um pelo outro, sentem o amor à camisola e muitas vezes era o seu próprio dinheiro que gastavam para levar em frente as suas ideias.

É de fácil sorriso. De fácil palavra e de sonhos ao alcance de qualquer um. As alterações climáticas e a pegada ecológica então, estão mesmo ali à mão de semear. Basta que todos remem para o mesmo lado nesta nau tormentosa da separação de lixos, de reciclagem e de reutilização de material. Felizmente, confessa, tem uma boa equipa que transmite aos colaboradores a mensagem que fez diminuir em quase 3 mil hectares globais a pegada ecológica, o que muito orgulha toda a edilidade.

Sendo o único município da região que segue uma estratégia para as alterações climáticas, reconhece que o ambiente é ainda um parente pobre para alguns dirigentes.

Recentemente, conta, para que não se pense que a crítica é para a Madeira, esteve em Vilamoura e Albufeira e as duas cidades contíguas pareciam de dois países diferentes. A primeira, perfeitamente organizada e limpa, a segunda uma desorganização e poluição evidentes.

Nunca poderia ter sido professora, a não ser numa escola que permitisse que os alunos passassem metade do tempo na rua a viver as experiências que levassem a entender que os ovos não nascem nos supermercados. Um local onde vai para dar dores de cabeça aos funcionários, quando chega à caixa com as frutas e as hortaliças todos dentro do mesmo saco reutilizável e recusando amavelmente a oferta do tal saquinho transparente por parte da operadora de caixa. Às vezes é preciso equilibrar as laranjas na balança, mas no final lá se consegue pesar tudo sem ser preciso usar mais plástico do que aquele que o ambiente comporta.

É assim que educa o outro casal lá de casa, com um e três anos. Leva-os pela mão e pelo exemplo aos recipientes certos e só tem reservas no caixote verde, não os deixando pegar nas garrafas.

Tem saudades de cinema, de teatro, até de televisão. E se a convidassem, gostaria de rodar um filme sobre o Funchal dos anos 70, cheio de romantismo e com a liberdade a dar os primeiros passos. Gostaria de ter sido adolescente ou adulta no tempo em que a cidade tinha várias salas de cinema espalhadas pelas ruas e não apenas concentradas em centros comerciais e ainda por cima, na maioria das vezes, com os mesmos filmes.

Quando perguntei se vivia num apartamento ou numa casa, devolveu-me a resposta embrulhada num sorriso. Tem um apartamento, mas com relvado e horta, onde nascem espinafres, couves, ervas aromáticas e afins. É uma espécie de jardim com apartamento, penso.

É dali que às vezes vem o pinheiro de Natal. Nem pensa em outro tipo de árvore, que não seja natural. Até pode ser um galho, mas nunca se atreveria a fazer uma árvore artificial. Quando me admiro com aquilo que penso ser uma preocupação ambiental meio enviesada, responde com uma pergunta: “e para ter a arvorezinha falsa, o que é preciso fazer para obter o plástico?”. Era aquele momento em que me devia levantar do sofá, pousar a chávena de chá e ir embora. Mas em vez disso resolvi ficar e ainda a ouvi dizer que todos os anos planta uma árvore para substituir a natural que lhe chega a casa, mesmo que não seja no mesmo lugar.

Gosta de se pôr no lugar da pessoa que fala consigo, principalmente quando é apresentado um pedido ou feita uma reclamação. É assim desde sempre. Como é desde há muito tempo a sua passagem pela noite do Mercado. Uma volta até as 23 horas, a compra sagrada das tangerinas e a fuga para casa antes da chegada da grande multidão que este ano vai poder contribuir para uma acção solidária.

Não espera menos do que as 26 toneladas de lixo que têm sido gastas anualmente no Natal. Mas reconhece que, sendo esta a era do plástico, produzimos muito, mas conseguimos fugir pouco.  Vê isso quando no final do dia olha para o seu embalão…

A tarde caiu, o sol escondeu-se atrás da cidade e quis saber qual a sua cidade preferida. Paris, a única que repetiu até hoje, mesmo que tenha a máxima de não voltar a visitar destinos num mundo tão grande. E onde vai voltar, pela quinta vez, mesmo que seja quando o casal mais pequeno lá de casa tiver idade para passear com os pais. Até lá, muito bom ambiente se vai viver na Câmara do Funchal, porque há cada vez mais prémios coleccionados.

Cafôfo fugiu de uma freira e foi parar à Quinta Vigia

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Para quem, como Paulo Cafôfo, vivia na Rua do Bom Jesus, em pleno centro do Funchal, os fins de semana na casa dos avós do Jamboto, em Santo António, ou as férias na casa dos avós da Madalena do Mar eram sinal de liberdade. A freguesia do concelho da Ponta do Sol, banhada pelo Atlântico ficava, de facto, no fim do mundo, porque não era local de passagem. O túnel de ligação à Calheta estava ainda a ser construído e quem ia para o concelho mais a oeste da Madeira ia pelos Canhas.

Era fácil, por isso, passar o dia inteiro de calções e chinelos, a entrar e a sair do mar que até hoje faz parte da sua vida, com dezenas de jovens que, como o actual presidente da Câmara Municipal do Funchal, ali passavam o verão.

“Ainda hoje guardo amizades desse tempo”. Das casas de família perto da sua ou dos acampamentos naquele parque de campismo selvagem que durante anos ali se montava de Abril até Outubro. As pessoas iam fazer as suas vidas e só voltavam nos feriados ou férias, mas não desaparecia nada das tendas. Outros tempos. Paulo confessa que é das memórias mais felizes que guarda da adolescência e até hoje conserva amigos que só via nessas romarias de funchalenses em dias assinalados.

É também daí que vem o espírito familiar que guarda dos convívios com os primos. Fala desses momentos, que perduram até agora e da felicidade que sente por ter podido passar esse espírito à geração seguinte. Embora já com telemóveis, mesmo que estejam todos juntos. Por outro lado, o professor de História, apaixonado pelas raízes e pela cultura, é um homem simples, que acabou por romper com algumas tradições que se vislumbravam na ilha desde sempre, como uma instalada hereditariedade nos mais diversos cargos.

Quando apareceu em 2013 como candidato à maior autarquia da Madeira, a pergunta que mais se fazia era: “mas ele é filho de quem?”.

A resposta é igual à de tantas outras famílias. O pai era funcionário de uma empresa comercial e a mãe, professora do Ensino Básico. Durante um tempo, quando faliu a empresa onde o pai trabalhava, a mãe teve dois empregos. Depreendo que foi o primeiro Cafôfo a ir para a política. Confirma-me. E foi um tormento lá por casa. Quando disse ao pai que ia estudar História e não Economia, deu um desgosto ao progenitor, mas levou adiante o que sempre tem sido o seu lema de vida. Só fazer aquilo em que acredita. Estava na altura da decisão na APEL, depois de ter passado por Santa Clara, Santa Teresinha e Salesianos. O pai teve de aceitar, tendo sido depois compensado pela escolha da filha, três anos mais nova do que Paulo e pelo próprio filho do autarca, que entrou recentemente em Economia.

Estudou em Coimbra. Virada para o Mondego, longe da Praia Formosa que faz parte de muitos dos dias do seu calendário.

“A minha relação com o mar é inexplicável. Saio de casa às sete da manhã, sem precisar de carro, dou a minha corridinha até Câmara de Lobos e quando regresso à zona do Centromar dou um mergulhinho e deito-me no calhau a secar antes de voltar para casa”. Uma forma de fazer terapia das pedras quentes, mas sem ter de pagar uma fortuna. Mas quando está ali, a sua criança interior desperta e não resiste a atirar umas pedrinhas para o mar. Deve ser por isso que o vemos sempre bem disposto. Descarrega toda a energia antes de chegar na sua Vespa ao estacionamento dos Paços do Concelho. Normalmente a essa hora já falou com a mãe, como faz todos os dias. Depois diz-me, quase em segredo, que a senhora, que ficou viúva no ano passado, vai nessa tarde para a Madalena do Mar, num táxi daqueles de sete lugares, como faz quase sempre, para passar o fim de semana a mexer na fazenda, mas sem esquecer o ioga, que pratica há muito tempo. “Ela é feliz assim”, mas não deixa de se preocupar com o que dizem e escrevem do filho autarca. Paulo reconforta-a, pede que não ligue, que desvalorize, mas não esquece as palavras do pai, falecido em 2016, que lhe dizia sempre não conseguir entender porque é que o filho mais velho se meteu nessas andanças da política.

 

Estamos em 2017. Longe, portanto, desse ano de 1982, quando o ET invadiu o ecrã do Cine Santa Maria. O primeiro filme que se recorda de ter visto numa sala de cinema a sério, mas também se lembra do cinema no Porto Santo, porque o avô paterno, electricista, montava os sistemas nos centros de saúde no arquipélago. Um trabalho num tempo difícil, dormia em casa de várias pessoas, quando o turismo rural e o alojamento local eram apenas uma miragem. Quando ia ao Porto Santo trabalhar, o avô Cafôfo levava os netos e ainda se lembra de o senhor lhes pedir para o cobrirem com areia, porque fazia bem aos ossos. Empiricamente, todos sabiam dos benefícios daquele gesto.

A conversa já ia na terceira geração e ainda não tinha encontrado “sangue azul”. Encontrei uma história simples de gente bem disposta, de bem com a vida, com um sentido de humor à flor da pele e que não deixa de ser quem é só porque desempenha o cargo actual. Não é “o filho de…”, é o professor que ainda há dez anos estava a trabalhar na Escola da Fajã da Ovelha.

No seu gabinete, há uma coluna que liga ao telemóvel durante várias horas do dia, para ouvir música. Tem de haver som, tem de haver melodia, tem de haver inspiração quando se trabalha. Gosta de todo o tipo de música, tem é de senti-la. É uma pessoa de emoções, mesmo aquelas que não se conseguem disfarçar em público, como já aconteceu em actos em que uma lágrima aparece sem aviso prévio. “Eu tento disfarçar, mas nem sempre é fácil”. Deve ser por isso que a meditação assume um papel tão importante na sua vida e que o incenso que perfuma o seu gabinete na autarquia torna o ambiente relaxante. Mas não era nada relaxante ter de entrar numa aula de música, quando andou no Colégio de Santa Teresinha. A Irmã Benilde, temida por todos os alunos, causou-lhe traumas de tal forma que a mãe, que queria que Paulo aprendesse um instrumento, o matriculou no Conservatório. Onde apanhou como professora… a irmã Benilde. Acabou nessa altura a sua ligação à música. Curiosamente, o objectivo era que tocasse piano. E depois, num sorriso carregado de humor negro, confessa: “Eu já estive na Quinta Vigia… era lá que funcionava o Conservatório”.

Do Colégio, não guarda traumas é da patinagem artística. “Eu era bom naquilo”, na altura em que a D. Trini Romero, a bailarina gibraltina que dava ginástica, também ensinava patins e ballet. Naquele ginásio que parecia infindável e que hoje, quando se é adulto, compara Paulo, parece diminuto.

Entro em terreno pantanoso. Pergunto onde vai buscar a calma perante o caos. Como é que aparece sereno durante um desastre, recordo a árvore do Monte, mas sobretudo os incêndios de 2016. “Tive um sentimento de impotência perante as chamas. Sou de carne e osso, não há um super-herói que desliga o botão das emoções”. Mas consegue manter a calma quando todos estão em pânico e é talvez isso que o ajuda a manter o equilíbrio mental e sobretudo a não ter sentimentos mesquinhos. É por isso que quase de imediato prossegue: “Eu não guardo rancor. Não tenho aquele sentimento mau que alimenta algumas pessoas. Eu perdoo… mas não esqueço”.

Do outro lado da balança, está a calma em contraponto com a euforia. Em 2013, perante os resultados eleitorais, enquanto todos exaltavam a vitória, parecia um espectador, sem grandes manifestações de regozijo.

Gosta de cultivar a lealdade. E gosta que as pessoas discordem dele, detesta a bajulice e a subserviência. Enquanto o diz, contorce-se como se estivesse a ser atacado por um enxame de abelhas e completa. “Detesto, detesto”. Mas gosta muito da gratidão e da humildade. Não se sente superior a ninguém, mas confia nas suas capacidades. Nada que se compare ao sexto sentido feminino, diz a sorrir, resignado.

Recuperar a cidade, a história e a alma da cidade, são a sua grande meta. Por ser professor da área, aprecia os lugares com anos de gerações entre os seus espaços. “Os lugares são pessoas. Nós precisamos de renaturalizar a cidade”, depois da betonização. “Não sou contra a construção civil e as obras públicas, mas sou contra a amnésia sobre a nossa história”.

“Temos uma cidade tão interessante, com tantos recantos, limpa, delicada, que tem espaços e lugares que precisam de ser cuidados”. É quase preciso fazer um detox. Devolver a alma a locais como os Bairros dos Moinhos e dos Frias. Criar acessibilidades e pracetas, miradouros, em becos serpenteados de onde se aprecie a cidade e se possa respirar a sua história…

 

A Rota de Eduardo Costa

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Eduardo Costa dispensa apresentações no mundo do audiovisual. Desde há mais de vinte anos tem andado na rota do contrabando, na revolta do leite, nas raízes de um povo, pois corre-lhe no sangue a história das nossas ilhas. Tem transportado para a tela alguns dos episódios mais marcantes da sua história.

Dobrada a esquina onde os cinquenta anos o esperavam, o homem que comprou a sua primeira câmara para filmar estágios de judo, tem quase 30 de profissão, um sem número de cursos recebidos e ministrados e uma mente cheia de ideias férteis para materializar.

Hoje, o estúdio onde cria e emprega colaboradores oriundos de várias áreas, é onde passa grande parte do seu dia, quando não está a dar aulas ou a procurar histórias para contar a várias gerações.

Gosta de desafios. De superar-se. Quando lhe pergunto qual o seu melhor trabalho, responde prontamente que foi o último. Cada vez que acaba uma produção, anota mentalmente que a próxima será ainda melhor.

Deve ter sido por isso que um dos seus últimos trabalhos, “A Rota do Contrabando”, feita para a segunda edição do Festival Aqui Acolá, na Ponta do Sol, venceu recentemente o prémio de melhor curta metragem documental, na 4ª edição do Figueira Film Art, que decorreu de 28 de agosto a 3 de setembro, na Figueira da Foz.

Um orgulho, sim, mas um problema para quem quer sempre superar-se. Curioso é o facto de só agora Eduardo Costa ter começado a concorrer a prémios, até porque naquela coisa da sétima arte, mandar um trabalho para um concurso, vai sempre pregado a um cheque. Nem sempre conseguiu fazê-lo, mas a estrutura da empresa até já lhe permite ter alguém a tratar de pesquisar prémios que valham a pena querer trazer para casa.

A “Rota do Contrabando” retrata a história dos homens que transportavam de norte para sul da ilha da Madeira centenas de litros de aguardente, durante a noite, pelo planalto do Paúl da Serra.

Contaram-lhe histórias, a medo, temiam que passados 50 anos viessem no seu encalço e os levassem para interrogatório. Eduardo esperou. Conversou, viveu aqueles dias como se uma máquina do tempo o tivesse levado para o Seixal do antigamente e subido e descido as serras com os homens que entregavam a aguardente na Ponta do Sol. Depois das conversas mantidas quase com tanto segredo como a rota em si, sentou-se numa plateia imaginária e idealizou o que o público queria ver. Não hesitou. Sentiu a alma daquela história percorrer-lhe o corpo, sorriu para o ecrã da sua mente e criou um dos melhores documentários sobre história da Madeira. Claro que quando o acabou, interiorizou que a “Revolta do Leite”, o trabalho seguinte, superaria os percursos errantes da aguardente.

Mas o percurso de Eduardo Costa no audiovisual não começou num curso de formação profissional ou num part-time numa televisão. Foi, imagine-se, no Ginásio Carlos Gonçalves, onde se tornou o primeiro cinturão negro da Madeira em judo. Mais tarde foi treinador e director técnico regional. Como  a internet ainda vinha longe no calendário e o facebook, o youtube e o vimeo eram miragens, as técnicas ou se aprendiam nos livros, ou em estágios com os que praticavam a modalidade há mais tempo. Era a câmara de Carlos Franquinho, seu grande amigo, que registava primeiro os estágios, depois passavam as imagens numa televisão colocada em cima do tapete no ginásio e só mais tarde Eduardo teve a sua própria câmara.

Aliás, é da opinião que dois minutos de imagem valem muito mais do que um livro inteiro de ensinamentos. Assim, começou a ligação dos audiovisuais e das artes marciais, que depois de um período de interregno, há uns anos, o fez voltar para a prática do aikido.

É do tempo dos cursos de audiovisuais do Cine Fórum do Funchal, na Rua do Carmo, as suas primeiras formações a sério, onde vieram grandes realizadores e grandes mestres transmitir o que faziam. Do grupo de muitos alunos iniciais, ficaram poucos. Hoje, acha que quando se tem talento e gosto, não há barreiras. Foca-se no que quer e não olha para trás. A não ser para ver os seus alunos, muitos deles bem lançados até a nível internacional, como o caso de Tony Santos, autor de um documentário sobre o FC Barcelona amplamente divulgado e elogiado.

Sorri quando confessa que vê filmes em DVD e depois “devora” o “making of” com as entrevistas do realizador, dos actores, de toda a magia da produção. Bem mais fácil do que trabalhar com esse “monstro” que foi Virgílio Teixeira, actor madeirense com que realizou “As Memórias Nunca se Apagam”. Hoje, diz mesmo que foi o momento mais complicado de apanhar com uma câmara.

Hoje, não sabe se teria os mesmos conhecimentos se tivesse feito uma licenciatura, e desconhece que licenciatura teria de ter feito para saber o que aprendeu ao longo dos anos. Gosta dos elogios e do reconhecimento do seu trabalho, como recentemente, quando entre mais de 4 mil filmes internacionais, a sua rota do contrabando ganhou uma categoria entre os 60 finalistas.

Neste momento, Eduardo Costa trabalha no seu estúdio debruçado sobre a baía do Funchal, onde está a ser ultimado pela equipa o melhor documentário da sua carreira. Um dia destes, voltamos a ouvir falar dele… e do seu melhor trabalho!

Adoro ser funcionária pública

By Gente que Marca 4.586 Comments

Perdi a conta aos quilómetros que fiz atrás da Sandra no Teatro.

Desde há dois anos e meio que a Chefe de Divisão de Cultura e Turismo da Câmara Municipal do Funchal tem estado na velocidade que se lhe conhece, sempre acelerada, à frente de uma equipa de 70 pessoas divididas por diversos serviços e edifícios, mas fez do “Baltazar Dias” o seu quartel general. Adiamos esta conversa vezes sem conta, porque a sua agenda, daquelas grandes de secretária, está cheia na maior parte das 12 horas diárias que passa a trabalhar.

Foram mais de vinte anos contados a entrar no atendimento ao público na autarquia e muitos deles ligados à organização das cerimónias oficiais, que levavam inevitavelmente o seu toque.

Agora, que tem a seu cargo várias outras “casas” além do Teatro, reúne para resolver questões dos Museus Henrique e Francisco Franco e do Açúcar, da Biblioteca Municipal, do Posto de Turismo, do Arquivo e ainda tem de arranjar tempo para os pareceres da cultura na autarquia, que passam todos pela sua mesa.

Sandra Assunção de Nóbrega faz hoje anos. Mas tenho a impressão de que não se lembraria disso se não estivesse de férias. Enquanto a perseguia no teatro escadas acima e escadas abaixo, lá me ia respondendo às perguntas que lhe fazia quando não estava a falar com um colaborador ou com os técnicos da empresa externa que chegaram para instalar o som para uma conferência a meio da tarde. Endireita cadeiras à medida que me explica o objectivo da sessão: ensinar as pessoas a preencher candidaturas para apoios. Parece simples, mas apareceram mais de 70 pessoas a pedir ajuda para não errar na hora de escrever nos formulários. Coisas herdadas do atendimento ao público da câmara, de onde as pessoas saiam sempre com respostas.

Desaparece entre as portas do foyer. Sigo-a. No mesmo instante entra na plateia do teatro e trata de mais um ou dois assuntos, antes de se enfiar literalmente por baixo do palco. Quer mostrar-me as catacumbas. Os bastidores, agora limpos, outrora amontoados de lixo. E de repente irrompe, sempre a explicar os planos para o teatro, pelas catacumbas, duas paredes de pedra com 130 anos que, explica-me, fazem com que a acústica do teatro seja tão boa. “Adoro o que faço”, desabafa. “Tenho muito orgulho em ser funcionária pública”. Porque “sirvo a causa pública, o que é do interesse público” e todos os dias procura fazer o que pode para que a sociedade em que vive tenha algo de melhor. Independentemente de quem está na cadeira do poder. Sempre foi assim.

É por isso que Sandra quer mudar o ADN do teatro. Elogiando a política da actual vereação camarária, que apostou na democratização da cultura. Essa coisa que é de todos, mas que antes só alguns entendiam. Sempre a cem à hora, lá me vai dizendo que quer mostrar o teatro a todos, trazer todos para o teatro, quer que todos o sintam como seu.

É essa a verdadeira acepção da palavra “public servant”, a “pessoa que serve”, de que tanto se orgulha. Mesmo que tenha de se dedicar fins de semana e noites, mas até o filho mais novo já tem uma poltrona no seu gabinete, mostra-me, quase ironizando, porque são muitas as vezes que tem de ir para o trabalho da mãe.

Sempre a sorrir, sobe as escadas estreitas de madeira e mostra-me o topo do teatro, a tal da teia visitável e que recentemente foi usada para sala de exposições. Abre as portas do terraço, dá a volta ao edifício e mostra-me os melhores ângulos para ver a cidade que se estende três pisos abaixo sob a copa das árvores. Quer fazer ali tertúlias. Mas antes, quando nos preparamos para regressar, agarra num balde de água e limpa dois chicharros que jazem no terraço. Solta uma gargalhada. Conta-me que uma gaivota perdeu o almoço. Felizmente não foi sobre uma rua da cidade na cabeça de alguém.

A cabeça está sempre a magicar ideias, volta para dentro, em direcção ao piso intermédio, mostra-me os camarins, orgulha-se do que tem o nome de Eunice Muñoz, inaugurado recentemente. Deixou de haver papéis nos corredores, afixados nas paredes, lixo por todo o lado.

Foi preciso “mostrar os dentes” a algumas pessoas que achavam que o teatro era delas. Não voltaram. Nem precisam, se for para estragar o que é de todos e que a ela e à sua equipa cabe, por agora, zelar.

Sempre a sorrir, apesar de ser difícil lhe ver a cara, porque anda sempre a cem à hora à minha frente, a ex-jogadora de andebol que chegou a ser chamada à selecção nacional, está satisfeita por ver a casa cheia quase todos os dias do ano. Conhece quem ali trabalha e valoriza quem a acompanha, tem o dom de tirar o melhor das pessoas e de as fazer sentir-se realizadas. É, de facto, uma aventura poder lidar todos os dias com pessoas, as setenta que pertencem à sua divisão e as centenas que entram nos espectáculos que ali acontecem, sejam da rede nacional Eunice, que trazem grandes produções ao Funchal ou uma palestra sobre o futuro da cidade, intercalada com um festival de cinema italiano.

Tem planos para os outros museus que coordena e vai logo anunciando que as mudanças vão surgir nos próximos tempos. Antes disso, é tempo de recarregar as baterias, voltar dentro de alguns dias, porque não aguenta muito tempo longe, e entrar no teatro com aquele sorriso de quem está bem com a vida e quer continuar assim. Mesmo que isso seja confuso para alguns…

 

 

 

 

Não deixem morrer o filho da braguinha

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E se um dia lhe mostrassem que o famoso Ukulele que tanto faz as delícias dos turistas do Hawaii é, afinal, filho da nossa bem madeirense braguinha? E se um dia lhe contassem a história dos 120 madeirenses que chegaram àquele arquipélago tão parecido com o nosso que os nossos antepassados se sentiram em casa?

Foi essa a história contada por Susana Caldeira, investigadora que se pôs a caminho, mas não o mesmo feito pelos milhares de madeirenses no final do século XIX, para descobrir que a Madeira está mais viva naquelas ilhas americanas do que se pensa.

Tinha dois filhos pequenos quando se enfiou no avião e durante mais de dois meses desenterrou o passado daqueles homens e mulheres que se dizem portugueses… de oitava geração.

Passeou na “Funchal Street”, uma das muitas ruas com nomes de portugueses, ouviu fado, o Bailinho da Madeira e mesmo “A Portuguesa” antes mesmo de lhe terem explicado que não percebiam o sentido do que diziam porque não sabiam nada na língua de Camões. Mas percebiam de saudade e de sentimentos e isso, afirma Susana, ninguém lhes vai tirar nas próximas gerações.

Não era de todo o sentido do seu trabalho inicial. A intenção era vasculhar o Arquivo Regional da Madeira à procura de referências a D. Estêvão de Alencastre, porto-santense que saiu da ilha ainda criança e que se tornou Bispo do Hawaii. Mas pedir a um investigador que feche os olhos quando descobre os mil e um fios de meada que se despontam à sua frente, é o mesmo que tapar os ouvidos a um maestro durante um concerto.

O filme começou a passar no ecrã da sua vida e algum tempo depois estava em Honolulu. Recebida de braços abertos por gente que nem conhecia, descendentes dos tais cerca de 20 mil portugueses que desembarcaram no Hawaii durante os anos seguintes à chegada do primeiro navio, em 1878, com 120 pessoas oriundas de várias freguesias da Madeira, Susana sentiu-se em casa. Comeu carne de vinho-e-alhos, malassadas e outras iguarias que atravessaram muitas gerações e dois oceanos.

Voltou de coração cheio. Mais de um século depois dos primeiros madeirenses terem pisado aquele solo. Com uma vontade imensa de voltar todos os dias. E de levar as nossas histórias dentro da mala.

Dos madeirenses soube, nas suas pesquisas, que foram recomendados por um médico alemão que ali viveu durante vinte anos e que depois passou pela Madeira, escrevendo aos ilhéus do Pacífico sobre as assustadoras semelhanças entre os dois arquipélagos. Recomendou que mandassem, desde o outro lado do mundo, buscar mão-de-obra na nossa ilha, por serem pessoas, na óptica de quem os recebeu, melhores do que os chineses para trabalhar, pois essa experiência anterior falhara. Além disso, os asiáticos tinham levado consigo doenças que se tornaram fatais para grande parte da população local.

Posto isto, prossegue a investigadora com inegável entusiasmo, era necessário repor a mão de obra com pessoas, conforme o documento do medico alemão, «com aspecto limpo, bom porte, com as antigas maneiras de educação das raças portuguesa e espanhola. Eles são, como raça, como já tivemos oportunidade de referir», continua o texto, «pessoas moderadas, diligentes, económicas e obedientes. Vêm para ficar e não mandam o seu dinheiro para fora do país, como acontece com outras nacionalidades. Confiamos na Junta de Emigração, tendo em vista o sucesso alcançado nesta primeira aposta na Madeira». E recomendava vivamente que viessem à Madeira buscar mais pessoas para se juntarem à primeira leva, composta por 19 casais e 3 mulheres solteiras, 36 crianças e 46 homens solteiros. Chegaram todos de excelente saúde, com pedreiros, carpinteiros e mecânicos na comitiva, embora o objectivo inicial fosse o de trabalharem todos nas plantações de cana-de-açúcar, tão conhecidas por estes lados do Atlântico.

Hoje, Susana fala da mulher que canta o fado com um lenço de Viana do Castelo e se emociona. A assistência também. Sem que uma e outros percebam nada de português, mas lançando orgulhosamente as origens na resposta dada à investigadora: sou português. Com nomes, sobrenomes e hábitos gastronómicos madeirenses e com uma braguinha, perdão, um ukulele (pulga saltitante), pela forma como o madeirense João Fernandes parecia coçar-se visto pelos olhos da esposa do governador, e onde não faltam os acordes herdados de muitas gerações. Há quem ligue o nome à «dádiva que vem de longe», o presente levado pelos madeirenses que ecoou durante 120 dias por esses oceanos durante a viagem inicial.

Passados quase 130 anos, a Madeira mantém fortes raízes no Hawaii. A investigadora reacende todos os dias a chama da vontade de aproximar os dois povos que, afinal, podem ser um só. As geminações feitas entretanto, com Honolulu em 1979 e Maui em 1985, não passaram do papel, mas naquelas ruas com nomes portugueses e cheiro a carne de vinho-e-alhos, muitos dos nossos antepassados deixaram o seu cunho, como muros de pedra emparelhada, edifícios com nomes de Faria, Mendonça e Araújo e na comunidade ainda há Teixeiras, Silvas, Freitas, Pereiras e Camachos. Oito gerações depois de João Fernandes ter chegado com a sua braguinha, que tornou o Hawaii tão conhecido, pede apenas que não se deixe morrer a nossa cultura no outro lado do mundo.

 

Maria, a Madeira em São Paulo

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Não, a Maria não nasceu na Madeira. Mas será que isso faz realmente diferença? Ela nasceu com a Madeira no coração, e na vida que escolheu para si – chama-se “folclorista” – procura as raízes e as tradições e os costumes da terra dos pais, ambos de Machico.

Já nasceu em São Paulo, terra onde nasceu, e onde se casou com Pedro (que curiosamente também nasceu no Brasil – mas só por uma questão de dias, também de pais madeirenses), e onde desenvolve a sua actividade, sempre próxima da Casa da Madeira em São Paulo.

A sua ligação ao folclore da Madeira aconteceu quase por acaso. Ouviu falar de um festival internacional de folclore que teria lugar na Madeira, pediu uma reunião com a direcção da Casa da Madeira, e enquanto esperava pelo fim de uma reunião, explicou o seu projecto a outras pessoas que lá estavam com ela. Ainda antes da reunião começar já tinha reunido parte do que precisava, e na sua primeira viagem à Madeira interveio no congresso, dizendo que estava ali para estudar o folclore madeirense, e que o queria promover e divulgar no Brasil. Trouxe uma mala vazia, mas que não ficou assim muito tempo – quando voltou tinha amostras, e fatos do folclore madeirense que ainda hoje estão no acervo do grupo que dirige, na Casa da Madeira.

Uma das primeiras pessoas que conheceu no âmbito desta visita foi D. Arsénia, da Casa do Povo do Curral das Freiras, que continua a ver e visitar cada vez que vem à Madeira. E entretanto foi fazendo a recolha de trajes e tradições de toda a ilha.

Foi convidada a ser “conselheira da diáspora”, e diz que entende o convite como uma missão. A missão de fazer o que pode pelos madeirenses em terras de Vera Cruz. E, como complemento, de fazer o que pode pelos brasileiros na Madeira, completando assim a ponte entre as duas culturas.

Para manter o grupo folclórico e cobrir os custos inerentes à sua actividade, organizam todos uns anos uma espécie de arraial madeirense, com barracas em que se serve espetada, “gaiado com semilhas”, favas de escabeche, pregos no bolo do caco, e sopa de trigo, acompanhado de poncha e “bebida de arraial” (vinho com laranjada). A gestão do grupo folclórico não lhe paga um salário, mas “os sorrisos e o brilho nos olhos de quem vê e de quem participa” são, diz Maria, a “melhor paga”. O grupo actua em casamentos e baptizados, bem como num restaurante a norte de São Paulo, em São Roque, a Quinta do Olivardo, onde também se organizam vindimas e pisas de vinho. Neste restaurante há gastronomia madeirense, e diz Maria, “fizemos juntos as flores de arraial”.

A Maria é um doce – eu sei porque falei com ela. E tudo o que ela diz vem do coração, e é sentido. Como é sentido o amor e a estima que ela tem pela ilha e pelos seus habitantes. A herança, afinal, que recebeu dos pais.

Amar a diferença

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Quando se dança com a diferença, a música é outra. Percebi isso com a conversa com o homem de quem se fala quando se fala da diferença destes homens e mulheres que arrepiam, fazem chorar e mostram de que calibre são feitos.

Há quase 16 anos que, por cá, se dança com a diferença. 60 cidades de 20 países depois, o grupo de dança inclusiva nascido da ideia de Henrique Amoedo não tem nada a provar a quem os vê e a quem os admira, desde aquele primeiro palco pisado e na anunciada última actuação em tempos difíceis.

Falar com Henrique é ver nos olhos a emoção de tantos anos, de trinta anos, de trabalho nem sempre compreendido e ver através da sua alma o amor que tem pelos meninos e meninas que descobriu um dia, aqui e ali, pela mão de Ester Vieira. Foi um daqueles golpes do destino que os colocou na mesma sala, há muitos anos, no Porto, quando o homem que é o rosto do grupo de gente “diferente” estava a dar uma formação. A professora/actriz viu ali mesmo o potencial do homem que formara um grupo pioneiro no Brasil, chamado Roda Viva.

E a roda viva da sua vida acabou por passar por uma ilha perdida enquanto acabava um Mestrado. Tinha tempo para estudar, durante o dia, dando formação à noite. Foi ficando. Um dia após o outro, uma semana após a outra, um mês após o outro. Foi permanecendo, com uma caixa de ideias que desenvolveu ao longo de meses, até criar o sonho que até hoje muitas pessoas vivem. Fala-me da sua criação com a propriedade de quem a fez crescer e até multiplicar-se. Hoje, o projecto “Dançando com a Diferença” existe em outras zonas do país, nomeadamente em Santa Maria da Feira e Viseu, quase como se de repente tivesse nascido uma espécie de franchisado da patente.

Olhei-o com a admiração de quem olha para um escultor, para a obra que lhe passa diante dos lábios, à medida que me conta o que fez com aquele grupo de estrelas que brilham e nos fazem brilhar o olhar.

Percorri aqueles anos, aqueles espectáculos ensaiados durante meses para fazer sorrir e chorar os que neles acreditaram, mas sobretudo aqueles, os milhares, que conquistaram pelo caminho. Olho para um pai, à minha frente, que fala das dezenas de filhos com o carinho que só uma pessoa especial daquelas poderá ter.

Se não fosse isso, dificilmente teríamos, hoje, um projecto internacionalmente aclamado como um dos grupos que mais tem contribuído para que o reconhecimento das capacidades estético-artísticas de quem ali passa parte do seu dia.

Mas o que mais toca no grupo é o facto de além, naturalmente, do foco principal da sua existência, o artístico, haver uma grande preocupação com os aspectos educativos e de apoio terapêutico, que são trabalhados ininterruptamente nos grupos secundários associados a esta entidade. Porque apesar de haver um “corpo” principal com 21 elementos, todos os outros merecem a mesma atenção e o mesmo carinho por parte da equipa de trabalho.

Nem tudo foram rosas. Quando pergunto qual o momento mais difícil, a resposta sai tardia, depois do olhar percorrer a parede atrás de mim, à procura das palavras. Como se ali estivesse a história destes anos escrita. Depois, acompanhado do suspiro que conteve durante uns segundos, Henrique traz à conversa o “Desafinado”, no Porto Santo, uma actuação em que curiosamente não esteve presente por outros afazeres profissionais. Apesar de longe fisicamente, o seu pensamento esteve com aquelas pessoas que não sabiam, nesse dia, se voltariam a pisar um palco alguma vez na vida.

Não é difícil entender a sua dor no momento em que me fala desse passado. Das dificuldades que teve em afirmar o projecto que, curiosamente, tem já preparada para iniciar em 2018 uma parceria com a Secretaria Regional de Inclusão e Assuntos Sociais para implementar um Centro de Actividades Ocupacionais Artístico, inédito no país, que vai desenvolver a sua essência através da arte em mobilidade.

Mas há um outro momento, aquele que o vai acompanhar durante toda a vida. O da primeira viagem do grupo, ao Brasil, quando participaram num festival internacional onde estavam também as suas origens, a “Roda Viva”. Voltar ao seu país, com um trabalho que estava a fazer fora, reencontrar pessoas com quem tinha trabalhado foi um misto de emoções, mas sobretudo foi um momento em que os alunos viram que não eram únicos no mundo e que não eram tão bons como imaginavam. Desceram à terra, aprenderam muito, sobretudo depois de Amoedo pedir a um colega que desse uma aula “a matar” aos madeirenses, para perceberem que tinham muito chão pela frente.

Quando termina um espectáculo, não é muito expansivo. Não começa aos beijos e abraços aos alunos, dá os parabéns quando gosta e fica calado quando não gosta. O que preocupa. Demora muito mais tempo a chegar perto dos actores. Prefere respirar fundo muitas vezes, apesar de saber que a audiência aplaudiu incansavelmente.

Em Abril voltam a sair de casa, a voar até ao continente, a expandir os seus horizontes. Culpa do homem que planeia, idealiza e executa, está sempre a pensar.

foto: GDD

Destes anos todos, guarda com particular carinho a montagem do espectáculo “Endless”, que demorou dois anos. Estava integrado num projecto europeu que envolvia parceiros em países como a Alemanha, Polónia, Lituânia e Estónia. Conceber o projecto previa que cada um dos parceiros teria uma parte, cabendo a da dança ao grupo madeirense. O tema? O Holocausto. Tiveram de visitar lugares míticos, explorar a cidade de Berlim, tiveram que entender o nazismo, a cidade de Berlim, o que isso significava para os povos envolvidos, nomeadamente alemães e polacos, que faziam parte desse projecto.

O Dançando com a Diferença não é um grupo qualquer. É um nome, uma marca, uma certeza. Para o bem e para o mal, diz Henrique. Porque é preciso manter esse peso enorme do nome que hoje em dia todos conhecem. O homem que o idealizou adoptou a Madeira com o coração de brasileiro que ouve as pessoas que se aproximam de si, muitas vezes apenas porque lhes transmite confiança.

Henrique é um sentimentalista. Como só quem ama a arte consegue ser. Como quem sabe o que tem em mãos, quando se “tiram” crianças do ensino especial e as torna especiais, as leva para um palco e as valoriza. As trata como iguais dentro da diferença que a natureza, ou o destino, lhes deu. Porque construíram juntos o projecto que hoje nos ensina a apreciar a diferença.