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Gente que Marca

Não deixem morrer o filho da braguinha

E se um dia lhe mostrassem que o famoso Ukulele que tanto faz as delícias dos turistas do Hawaii é, afinal, filho da nossa bem madeirense braguinha? E se um dia lhe contassem a história dos 120 madeirenses que chegaram àquele arquipélago tão parecido com o nosso que os nossos antepassados se sentiram em casa?

Foi essa a história contada por Susana Caldeira, investigadora que se pôs a caminho, mas não o mesmo feito pelos milhares de madeirenses no final do século XIX, para descobrir que a Madeira está mais viva naquelas ilhas americanas do que se pensa.

Tinha dois filhos pequenos quando se enfiou no avião e durante mais de dois meses desenterrou o passado daqueles homens e mulheres que se dizem portugueses… de oitava geração.

Passeou na “Funchal Street”, uma das muitas ruas com nomes de portugueses, ouviu fado, o Bailinho da Madeira e mesmo “A Portuguesa” antes mesmo de lhe terem explicado que não percebiam o sentido do que diziam porque não sabiam nada na língua de Camões. Mas percebiam de saudade e de sentimentos e isso, afirma Susana, ninguém lhes vai tirar nas próximas gerações.

Não era de todo o sentido do seu trabalho inicial. A intenção era vasculhar o Arquivo Regional da Madeira à procura de referências a D. Estêvão de Alencastre, porto-santense que saiu da ilha ainda criança e que se tornou Bispo do Hawaii. Mas pedir a um investigador que feche os olhos quando descobre os mil e um fios de meada que se despontam à sua frente, é o mesmo que tapar os ouvidos a um maestro durante um concerto.

O filme começou a passar no ecrã da sua vida e algum tempo depois estava em Honolulu. Recebida de braços abertos por gente que nem conhecia, descendentes dos tais cerca de 20 mil portugueses que desembarcaram no Hawaii durante os anos seguintes à chegada do primeiro navio, em 1878, com 120 pessoas oriundas de várias freguesias da Madeira, Susana sentiu-se em casa. Comeu carne de vinho-e-alhos, malassadas e outras iguarias que atravessaram muitas gerações e dois oceanos.

Voltou de coração cheio. Mais de um século depois dos primeiros madeirenses terem pisado aquele solo. Com uma vontade imensa de voltar todos os dias. E de levar as nossas histórias dentro da mala.

Dos madeirenses soube, nas suas pesquisas, que foram recomendados por um médico alemão que ali viveu durante vinte anos e que depois passou pela Madeira, escrevendo aos ilhéus do Pacífico sobre as assustadoras semelhanças entre os dois arquipélagos. Recomendou que mandassem, desde o outro lado do mundo, buscar mão-de-obra na nossa ilha, por serem pessoas, na óptica de quem os recebeu, melhores do que os chineses para trabalhar, pois essa experiência anterior falhara. Além disso, os asiáticos tinham levado consigo doenças que se tornaram fatais para grande parte da população local.

Posto isto, prossegue a investigadora com inegável entusiasmo, era necessário repor a mão de obra com pessoas, conforme o documento do medico alemão, «com aspecto limpo, bom porte, com as antigas maneiras de educação das raças portuguesa e espanhola. Eles são, como raça, como já tivemos oportunidade de referir», continua o texto, «pessoas moderadas, diligentes, económicas e obedientes. Vêm para ficar e não mandam o seu dinheiro para fora do país, como acontece com outras nacionalidades. Confiamos na Junta de Emigração, tendo em vista o sucesso alcançado nesta primeira aposta na Madeira». E recomendava vivamente que viessem à Madeira buscar mais pessoas para se juntarem à primeira leva, composta por 19 casais e 3 mulheres solteiras, 36 crianças e 46 homens solteiros. Chegaram todos de excelente saúde, com pedreiros, carpinteiros e mecânicos na comitiva, embora o objectivo inicial fosse o de trabalharem todos nas plantações de cana-de-açúcar, tão conhecidas por estes lados do Atlântico.

Hoje, Susana fala da mulher que canta o fado com um lenço de Viana do Castelo e se emociona. A assistência também. Sem que uma e outros percebam nada de português, mas lançando orgulhosamente as origens na resposta dada à investigadora: sou português. Com nomes, sobrenomes e hábitos gastronómicos madeirenses e com uma braguinha, perdão, um ukulele (pulga saltitante), pela forma como o madeirense João Fernandes parecia coçar-se visto pelos olhos da esposa do governador, e onde não faltam os acordes herdados de muitas gerações. Há quem ligue o nome à «dádiva que vem de longe», o presente levado pelos madeirenses que ecoou durante 120 dias por esses oceanos durante a viagem inicial.

Passados quase 130 anos, a Madeira mantém fortes raízes no Hawaii. A investigadora reacende todos os dias a chama da vontade de aproximar os dois povos que, afinal, podem ser um só. As geminações feitas entretanto, com Honolulu em 1979 e Maui em 1985, não passaram do papel, mas naquelas ruas com nomes portugueses e cheiro a carne de vinho-e-alhos, muitos dos nossos antepassados deixaram o seu cunho, como muros de pedra emparelhada, edifícios com nomes de Faria, Mendonça e Araújo e na comunidade ainda há Teixeiras, Silvas, Freitas, Pereiras e Camachos. Oito gerações depois de João Fernandes ter chegado com a sua braguinha, que tornou o Hawaii tão conhecido, pede apenas que não se deixe morrer a nossa cultura no outro lado do mundo.

 

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