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As nossas ilhas

Fechado para a Festa

By 8 Dezembro, 2016Dezembro 14th, 20222.018 Comments
fechado

Foto: visitmadeira

É oficial. Fechámos ontem para Festa. Se a Madeira fosse uma loja teria qualquer coisa deste género escrito na porta, porque de facto tudo o que não é importante ou matéria fiscal, pode ficar para depois da fava do bolo-rei. Mas também pode ficar para depois do Santo Amaro, já a meio de Janeiro. Quem conhece os madeirenses, sabe que desde há várias semanas andamos a adiar as grandes decisões para 2017, porque é tempo de viver a Festa e preparar a fatiota para a noite de 30, a de 31… todas as que servirem de pretexto para um jantar.

Há o jantar da empresa, normalmente a partir do dia 7. Depois o do ginásio, que vem servido com calorias que punem e castigam qualquer um. Para Janeiro, sempre Janeiro, fazem-se promessas de as perder nas máquinas. Antes da semana do Natal, o jantar do grupo que desde a adolescência joga futebol duas vezes por semana ou o das amigas do curso de decoração floral tirado há mais de vinte anos.

Queimam-se os últimos dias de férias religiosamente guardados desde o Verão, mas que este ano nem dão muito jeito porque o calendário não ajuda.

Estamos fechados. Podia ser para obras, mas é para as festas. As nossas festas, que vivemos intensamente na casa de familiares que só vemos uma vez por ano, na data certa. Todos os anos desde há mais de vinte ou trinta, onde levamos sempre as mesmas sobremesas e os miúdos, que eram pequenos, já têm filhos pequenos, das idades deles quando esses almoços começaram.

Andamos a juntar amigos para tomar uma poncha, uma ginja, um simples licor, provar as broas feitas em casa, depois das missas do parto que se transformaram em engarrafamentos nunca antes vistos nas portas das igrejas de madrugada. Há quem não perca uma. Começa na de Ponta Delgada e para na da Camacha, depois da do Curral das Freiras, da Nazaré e dos Álamos. E depois vamos todos trabalhar, onde chegamos mais cedo porque não saímos de casa à pressa, ensonados, mas viemos direitinhos do adro das igrejas que percorremos de garrafão na mão e bolo de mel dentro da bolsa que mora dentro da bagageira do automóvel até acabar, sabe-se lá em que missa e em que freguesia. Foi ultrapassado pelas sandes de carne de vinho-e-alhos e de espada, que se comem nos bares que abrem mais cedo e têm entrada certa dos madrugadores que se levantam com mais vontade para ir à “missa” do que se levantam, três horas mais tarde, para ir para o emprego o ano inteiro.

Ainda não chegamos ao dia 23 e já estamos esgotados de tanta agenda.

E preparamos a grande noite. Aquela que faz lembrar a cidade que nunca dorme. A Madeira transforma-se num funil que acaba na porta do Mercado dos Lavradores. São milhares de pessoas a andar para baixo e para cima, normalmente na mesma rua e desordenadamente.  Ficamos ensanduichados entre um carrinho de bebé que nos atropela e um turista de calções e máquina fotográfica que não tem pressa. Nem vale a pena ter, porque dali não se passa. Ao longe, vemos as pessoas com quem saímos, paradas à nossa espera e, como pararam, fizeram parar os outros todos atrás e é difícil chegar lá, ainda mais de cabrinhas na mão e as flores de sapatinhos acabados de comprar, elevados para não se partirem.

Dez minutos depois, lá conseguimos tocar no ombro das pessoas com quem saímos, avisando que chegámos da tal travessia. Já compraram fruta, mais cara do que no ano inteiro, mas festa é festa e desde sempre que a família compra tangerinas e anonas naquela época. Lindo, agora há sacos de fruta para juntar ao engarrafamento.

Desaparecemos ao longo da noite, para os estacionamentos onde temos os automóveis. Chegar a casa é uma nova aventura. Já temos combinada a Missa do Galo, os almoços de 25 e o de 26, falamos da passagem de ano e de onde vamos ver o fogo de artifício.

Vamos trabalhar nessa semana, os que não conseguimos férias. A menos de meio gás.  Já andamos a construir a pilha de papéis para Janeiro e vamos ao comércio tradicional trocar as prendas que não serviram. Porque as dos centros comerciais já foram a 26, no antepenúltimo engarrafamento do ano. Passamos o dia a arranjar desculpas para esticar as horas do café, revezamo-nos no escritório com os colegas que também não conseguiram férias. Se somos mulheres, vamos à procura dos brincos para o dia 30, o colar para o dia 31. Os homens ajudam-se a manter a temperatura do corpo quente e usam qualquer desculpa para beber um copo depois do trabalho, que também não foi muito, porque a cidade está parada.

Chega o dia 30. A cavalgar. Nem nos apercebemos que o tempo passou tão depressa. Compramos passas. Roupa interior nova. Invadimos as lojas da especialidade e ouvimos falar em cores que não eram as que tínhamos em mente. Azul, rosa, amarelo, vermelho, branco… não tem por acaso uma com as cores do arco-irís?

Penúltimo engarrafamento do ano: a última madrugada. Levamos horas para chegar aos lugares para mostrarmos a roupa nova, a última grande festa do calendário madeirense, que não se inspira no chinês ou em qualquer outro. Desfilamos os vestidos acabados de comprar, alargamos os sapatos para a noite seguinte, bebemos e dançamos até de manhã e vamos para casa dormir porque há tolerância de ponto, a última do ano e acordamos algumas horas depois em sobressalto porque temos de ir às unhas, ao cabeleireiro, à lavandaria e ao supermercado correr atrás do último pacote de passas.

Andamos sempre em festa. Corremos para casa sempre de olhos no porto, há cada vez mais navios a chegar e a fundear.

Anoitece. Último engarrafamento do ano.

Parece o efeito funil da noite do mercado, mas em versão motorizada. Todos querem estacionar o mais perto do centro possível, talvez até levar o automóvel para o cais da cidade. Olhamos o relógio, pela enésima vez. Meia noite. Fogo. Apitos. Beijos. Passas. Espumante ou champanhe. Entramos no ano seguinte cheios de esperança. Mais festas. A noite toda, em todo o lado. Andamos em bandos pela cidade, parecemos pássaros de tecidos esvoaçantes, rapamos frio, mas a vaidade sobrepõe-se. Vamos para casa com o sol alto e dormimos o dia todo. Preparamos o cantar dos reis, na véspera e no dia certo. Cortamos bolos. Vários. Em casa, no trabalho, no ginásio…

Os mais resistentes prolongam a folia até o Santo Amaro. Varrem os armários, como manda a tradição. Se a Madeira fosse uma loja, preparávamo-nos para tirar a tabuleta da porta onde estivemos encerrados para festas durante um mês. As festas que só nós conhecemos e que só nós conseguimos viver.

 

 

 

 

 

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