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Gente que Marca

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O homem que mantém viva a Madeira em Jersey

By Gente que Marca 1.912 Comments

Joe (ou João Carlos) Nunes. É assim que é conhecido desde que se estabeleceu em Jersey, vai para cerca de quarenta anos. Nasceu no Funchal, na zona da Levada do Cavalo, mas acabou por mudar para o Livramento. Cumpriu serviço militar em Portugal, e trabalhou para a General Motors. Depois fartou-se da Madeira.

Não, vamos reescrever esta última frase. Não se fartou da Madeira, fartou-se das limitações que lhe impunham na Madeira de há quarenta anos. E foi depois de ver recusado um pedido para ir trabalhar em Cahora Bassa que acabou por ir trabalhar em Jersey. Propuseram-lhe uma posição na General Motors alemã, em Stuttgart, mas ele estava mais “próximo” dos ingleses que dos alemães, pelo que foi trabalhar em hotelaria em Jersey.

Durou menos que um ano. Depois de um ano, começou a assegurar a manutenção de uma padaria, coisa que fez durante muitos anos – mesmo depois de se alargar para outros horizontes. Hoje é dono de uma residencial, depois de ter passado pela importação e manutenção de automóveis. E é feliz em Jersey, onde cada vez mais tenta divulgar as tradições portuguesas e madeirenses.

Está muito envolvido com a comunidade, e sempre que passa pelo Funchal tenta de alguma forma dinamizar a geminação entre St. Hellier e o Funchal. Porque, diz, as pessoas precisam das suas raízes, e das suas comunidades, e o acordo de geminação dá uma visibilidade à comunidade portuguesa – e especialmente a madeirense – que não teria de outra forma.

Aliás, o que mais transparece da nossa conversa é o gosto que tem por ser esta ponte, e pela estima que tem pela Madeira, que o viu nascer, e por Jersey, onde se estabeleceu e viveu grande parte da sua vida. De resto, é uma pessoa calma, que pensa antes de responder a uma pergunta, e que tem sempre o cuidado de enquadrar a sua resposta. E que pondera a sua resposta não só na sua experiência, mas também na da sua comunidade, sendo de destacar o cuidado que tem sempre na promoção dos interesses destes portugueses em terras de Sua Majestade.

Dos portugueses em Jersey, diz que são bem vistos. Que são trabalhadores. Que fazem pela vida. E que não criam problemas. Sobre os madeirenses, especificamente, diz que se adaptam melhor a viver por lá. Talvez porque já estejam habituados a viver numa ilha… Mas em Jersey “somos todos portugueses…”, acrescenta.

Sobre Jersey, diz-nos que continua a ser um local calmo, onde as pessoas não têm pressa, e onde ainda há tempo para tudo. A população tem vindo a crescer, bem como a comunidade portuguesa, de cerca de 10 mil pessoas, “mais os temporários”.

É uma comunidade muito activa, para o que pode contribuir o facto de ser muito concentrada, e de haver manifestações recreativas e culturais que a mantém consciente das suas raízes. E se o Clube Português é hoje em dia uma sombra do que já foi, a verdade é que há uma comissão que organiza os dias de Portugal e da Madeira, bem como um “Portuguese Food Festival” que tem lugar todos os verões no centro de St Hellier, com comidas e bebidas portuguesas, mas também com animação. “Fazemos sempre o que podemos para que haja um artista português a actuar nestas festas”.

E é também assim que se mantém vivas as raízes.

Só existo devido a um erro geográfico

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Cheguei com intenção de contar a história da contadora de histórias, mas Sofia trocou-me as voltas.

Foi quase como se da folha branca saíssem letras, palavras, narrações na primeira pessoa de quem prende o olhar de tantas crianças e adultos.

Na esplanada, na manhã ventosa daquele sábado, o vento não assustava e de vez em quando brincava com o cabelo louro da neta de Gunther Maul, o primeiro a chegar à ilha com aquele sobrenome.

A mulher que contou a história da sua história não é mais a menina diferente de olhos verde camaleão, sardas e cabelo muito claro que entrou num colégio madeirense nos anos 70 e que era observada por crianças de cabelo castanho e olhos escuros.

O avô paterno não gostava do frio e começou a mandar currículos para lugares quentes, recebendo uma resposta da Nova Zelândia, para dali a seis meses e outra da Madeira, com efeitos imediatos.

Com antecedentes judeus e em pleno pós-primeira guerra mundial, a opção foi sair logo de Hamburgo.

Depressa se integrou na comunidade estrangeira residente na ilha, passando a ser conhecido por Gerry, o termo depreciativo que usavam na I Guerra Mundial para chamar aos alemães. Nessa altura, conta-me Sofia com os olhos verde camaleão quase fechados por causa da claridade do meio dia, deixou de falar a língua materna e não falava da família. Deliberadamente.

Um dia, estava o jovem Gunther no então Clube inglês, actual Quinta Magnólia, quando viu uma jovem britânica a jogar ténis. Do pai, não reza a história, mas a mãe era financeiramente independente e tinham por hábito passar férias em sítios quentes. Como todas as histórias de amor, esta também mete cartas e juras eternas. E com a ajuda da sua ama, que ainda mantinha quando era adolescente, correspondeu-se com Gunther durante quatro penosos anos. No dia em que a jovem fez 21 anos foi buscá-la com o dinheiro que poupou.

Casaram quatro dias depois numa capela em Londres. Um desgosto para a mãe dela, pois além de alemão, o homem era pobre e sem família. Ela foi deserdada.

Nasceram dois filhos dessa relação. Nessa altura, já pestanejo de tão seduzida que estou pela história e adivinho que falta pouco para o coração palpitar com o desenrolar do enredo. Sofia bebe um pouco do chá, como se fosse virar a página.

Do lado da mãe da contadora de histórias a história não é mais pobre. Havia um bisavô californiano, de antepassados suecos, tornando-se leiloeiro quando regressou ao país da família. Vasculhava baús e celeiros, onde havia velharias e vendia-as pelo melhor preço, depois de restauradas.

Um dia, um médico disse-lhe para ir a um sítio quente passar férias e alguém lhe relatou umas férias maravilhosas passadas em Maiorca. Entra na agência de viagens e não conseguiu passar da primeira sílaba. Quando disse «Ma… ma…ma…» a agente logo ajudou: Madeira!

De sorriso trocista, a mulher com um brinco diferente em cada orelha, sentenciou: «eu só existo devido a um erro geográfico da agente de viagens». Veio cá de férias, comprou casa, foi trazendo a família e depois a neta conheceu o pai de Sofia. A mãe, sueca, casou com um filho de um alemão e hoje têm quatro netos muçulmanos. Mas já lá vamos.

Voltemos a Sofia. A miúda que queria ser bióloga e descobrir mais do que o Museu de História Natural onde o avô esteve tantos anos a receber milhares de crianças. Os anos passaram, a contadora de histórias, protestante e aluna de um colégio católico, enriqueceu a sua vida com episódios marcantes. Ela e o irmão seguiram as pisadas das famílias e enamoraram-se de pessoas diferentes. Como mandava a tradição lá em casa. Ela, com um senegalês, o irmão, com uma malaia. De tal forma que o pai graceja que se lhe tivessem dito há quinze anos que os quatro netos seriam muçulmanos teria irrompido numa gargalhada. O irmão converteu-se nas catacumbas de uma livraria londrina e os três filhos são primos da sua filha, uma mistura encantadora de duas raças que não podia ter dado mais certo. Bali é linda, doce e muito, mas mesmo muito extrovertida a partir do vigésimo segundo. Não é difícil adivinhar de quem são os seus genes.

Foi para Coimbra estudar e ser intérprete. O plano era trabalhar quatro meses por ano e nos outros ser bióloga marinha, ainda que soubesse que teria de se formar em ambas as coisas. Mas garra não lhe faltava. Convidaram-na para fazer trabalhos que a fizeram ficar fisicamente doente. «Saiam da minha boca palavras com as quais não concordava, enquanto traduzia as ideias e desisti». Os pais separaram-se, para ajudar no turbilhão de emoções e depois, a cereja no topo do bolo, foi o medo de adormecer, porque fazia parte da tripulação da ambulância da Cruz Vermelha e tinha frequentemente pesadelos com os casos que transportava.

Voltou para a Madeira. Viu anúncios de emprego. Até de condutora de máquinas pesadas, tal era o desespero de encontrar qualquer coisa. Tropeçou na terapia da fala. Mais um casamento, desta vez entre a linguística e o cérebro, que a fascinavam de tal forma que não hesitou em fazer a formação. O negócio com o pai foi ter financiamento para o curso desde que as notas não fossem inferiores a 16 valores. Valeu a teimosia da aluna, que quando terminou o bacharelato começou a trabalhar numa escola de surdos, onde a proposta foi trabalhar bilingue: a primeira língua seria a gestual e a segunda, o português, escrito ou falado. Foi pioneira em Portugal, com uma colega que continua a fazer o mesmo.

Recebeu, naturalmente, várias propostas de trabalho e durante anos lecionou em muitas das escolas bilingues da zona do Estoril. Ganhava bem. Conheceu o pai da sua filha, engravidou e não regressou. Sofia tinha por hábito oferecer uma história no final das sessões com os alunos e um dia foi convidada para ouvir contar histórias na biblioteca de Oeiras. Não hesitou. Encantou-se por uma formação de leitura em voz alta e a sua vida mudou. Uma vez mais. Juntou-se a um grupo entretanto formado de contadores de histórias que conhecemos como “Os Contabandistas”. Sem “R”, apesar de o nosso cérebro corrigir automaticamente por achar que é um erro ortográfico. Foi a explicação que recebi depois de me ter enganado, mas ela estava pacientemente à espera que esse momento chegasse. Já lhe aconteceu dezenas de vezes.

O movimento foi crescendo. Começaram a promover eventos de contos. Voltou para a Madeira definitivamente em Fevereiro de 2015, mais de dois anos depois de ter contado uma história em agradecimento ao grupo que em Setembro de 2012 foi com ela para a serra plantar dragoeiros depois dos fogos.

A vida trocou-lhe as voltas e separou-se em 2014.

Voltou à ilha e abraçou as histórias como quem abraça um urso de peluche e até hoje, reconhece, tudo descamba depois. Sempre. Porque uma das partes mais importantes do contador é escutar e consegue perceber onde quer o público ir.

Há uma linguagem própria e colectiva que é seguida por todos. Não costuma ver pessoas a bocejar ou a olhar para o telemóvel, cativa-os com os olhos azuis e o ar descontraído. Só conta o que lhe toca. O que lhe mexe com a alma. Tem de ter a ver com liberdade. Gosta de alternar entre contos tradicionais, histórias de vida e contos de autor. Adapta e traduz algumas coisas. Enriquece-as com o seu toque pessoal, mas diz sempre de onde veio o que conta e quem a escreveu. Acaba por enfeitar as palavras como quem enfeita uma árvore de Natal, com carinho e um cuidado extremo, para que quem ouve possa construir as suas próprias pontes para o fio da meada que desenrola.

Quis saber quando é que sentiu que aquela era a sua praia, aquela coisa que enche o coração de palavras que não se descrevem. Foi com adultos. As crianças têm a memória muito viva, mas não são tão exigentes. Por isso as abandonam no primeiro ciclo à sua própria leitura. Sofia explica: «quando estamos na creche, as educadoras contam-nos histórias, mas quando chegamos ao básico, os nossos pais acham que, como já sabemos ler, podemos encantar-nos sozinhos». E completa, com ar sério: «durante anos não consegui sequer ouvir falar brasileiro, porque tenho a memória dos meus pais estarem a ver a novela “Gabriela” e nós esperávamos, eu e o meu irmão, no cimo das escadas, à espera que nos contassem as histórias de que gostávamos».

Essa é a razão pela qual gosta de histórias de vida, o motivo que a leva passar esse património. Só saberemos para onde vamos, se soubermos de onde viemos. Por enquanto, sabemos que o seu sorriso se passeia por vários cantos da cidade. Se quiser ouvir uma história, sente-se confortavelmente e aprecie a loura de olhos azuis que nasceu na Madeira, a ilha que adora, por um mero erro geográfico que agradece.

 

A fotógrafa das emoções…

By Gente que Marca 1.902 Comments

Assina com alma tudo o que faz e questiona mais ainda, ou não fosse ela cientista.

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De um lado, tem a herança do pai, que a fotografava, sozinha ou ao lado dos irmãos, com a maior das naturalidades e os cuidados da mãe, que os embonecava nas datas assinaladas para levar ao fotógrafo de cenário montado e flashes em forma de guarda-chuva.

Sara Reis Gomes é autora de muitas fotos recentes de bebés com famílias incluídas, que vemos passar nas cronologias das redes sociais, mas não pensou, há três anos, que fosse agarrar de forma tão apaixonada o que andou adormecido desde a sua infância.

Bióloga Marinha, casada e mãe de quatro filhos, decidiu durante um internamento de quinze dias no hospital organizar as fotos dos dois mais velhos e das duas mais novas, uma das quais com apenas um ano. Deve a esse golpe que a vida lhe desferiu a descoberta da paixão que evidencia pela fotografia, quando no Nini Design Centre me conta os primeiros passos deste segundo passeio pelo mundo das imagens que se guardam.

 

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Sentada no bar onde chegam os turistas que despontaram no porto a bordo de dois navios, olha para os raios de sol do outro lado do vidro. Tem diploma de cientista e alma de mãe. A mãe que quis guardar os melhores momentos e não todos, porque não são precisas cem fotografias do primeiro ano do bebé para nos lembrarmos mais tarde de como ele era. Aliás, a sua mãe só os levou ao fotógrafo com um, seis e doze meses. Valeu-lhes o pai, afinal, que os apanhou em momentos em que os vestidos não estavam engomados e os cabelos alinhados e presos em laçarotes.

Mas há algo que recorda com saudade, agora que começa a trabalhar os postais de Natal encomendados pelos fiéis clientes. A simplicidade dos adornos que se ofereciam nas folhas brilhantes de 10×15 cm dadas aos avós, tios e padrinhos.

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Hoje, lamenta, com tanto ornamento nas fotografias desta época, depressa as pessoas se distraem do elemento principal, a pessoa. É contra isso que tem lutado nos workshops que tem dado e que têm estado com casa cheia. Mas já prepara os do próximo ano, um dos quais no Nini Design Centre, garantindo que há lugar para todos. «Mesmo que tenha de abrir mais datas», sorri.

Olho para a mãe de quatro crianças entre os 3 e os 14 anos questionando se o seu dia não terá mais horas do que os outros. Ainda mais quando se tem um filho com dislexia, uma patologia que fez com que desse início ao blogue “Would You Mum”, que está neste momento a reinventar-se. Falava da particularidade do aluno, do filho, da criança que, em vez de ler, juntava as letras e por isso demorava mais tempo do que os outros. E da decisão de o levar a Lisboa, procurando respostas em todos os lugares. Incluindo a internet. O seu lado de cientista questionou sempre. Levou-a a estudar mais o cérebro do que muitas mães e a explicar sempre ao mais velho o que se passava com ele. Não escondeu a particularidade. Mas depressa descobriu que estava a monologar em vez de dialogar. As pessoas escondiam a patologia dos seus filhos. Não a encaravam. Sara passou a tratar o neurodesenvolvimento por tu, tornou-se mais um morador lá de casa. Habituaram-se a ele todos os dias e os mais novos foram crescendo a conviver com um irmão que requer algumas atenções, como qualquer um deles tem as suas.

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Foi deixando o blogue com a mesma velocidade com que “pegou” nas fotografias. Ainda os casou durante um tempo, mas a paixão pelo instante do clique e pelo grande momento em que se transforma a foto falaram mais alto.

Hoje, fala-se da mãe que desde 2002 guarda as imagens que um dia os filhos vão ver, sem as poses do fotógrafo ou os cabelos alinhados e laçarotes a enfeitar.

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Não tem medo de deitar fora o acessório, guardando apenas o essencial e tem ensinado isso a muitas mães que passam pelos seus workshops, gostando sobretudo de partilhar sorrisos, expressões, emoções que causam sorrisos. É por isso que se assume como apaixonada pelas crianças que vê crescer do outro lado da objectiva, que atrai para os seus braços quando as quer apanhar na traquinice ou a morder o queixo da mãe, num jeito ternurento e único que rouba para a sua lente.

É difícil ficar indiferente ao seu trabalho. De tal forma que já se reconhece o seu traço, quando alguém publica as fotos da evolução de um bebé até um ano, um trabalho que muitas vezes começa quando o manequim ainda mal vestiu a primeira roupa. Amarela, pois claro, ou com qualquer outra cor. Mesmo que a fotografia, a tal, seja a preto e branco. Depende sempre do que se quer transmitir. Há fotos que ficam melhores assim, outras que precisam de cor para ter expressão. É o momento, mas sobretudo a emoção, que ditam o que sai dos milhões de bytes que guardar no seu computador e é entregue aos cada vez mais clientes que a procuram. Como os clientes que entram no lugar onde a designer madeirense Nini guarda as suas criações. Estas bem mais pesadas do que uma imagem, mas que também causam muitas emoções, a julgar pelos turistas que nos rodeiam de máquina em punho e disparos de telemóvel. Até temo que distraia a minha convidada e que, de um momento para o outro, comece a dar dicas aos amadores que nos circundam.

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Voltamos a falar de tempo. Da sua capacidade de organizar o dia a dia com quatro crianças e o trabalho como bióloga. Sorri quando responde que a partir de uma certa hora, lá em casa, deixa de se ouvir a palavra mãe, para começar a ouvir-se a palavra pai. E depois, em tom mais baixo, parece confessar que as notas dos filhos desceram quando começou nesta aventura, mas depois aumenta logo o tom para justificar o inevitável: mais cedo ou mais tarde, eles iam ter de estudar sós. Assim, acabou por lhes dar responsabilidades mais cedo, apesar de contar com o apoio incondicional do marido.

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Encontro-me perante duas mulheres dentro de um corpo. Como se fossem partes que se encaixam de uma daquelas peças que nos rodeiam e que Nini desenhou. Uma metódica e inquiridora, procurando sempre descobrir os porquês, por defeito profissional e outra que, descontraída, deixa os filhos se arranharem e crescerem com as cicatrizes, pois tudo faz parte. Se houver uma máquina fotográfica por perto, óptimo. Se não houver, não faz diferença. Haverá sempre outro momento. É tão difícil perceber onde acaba uma e começa a outra, porque a descontraída é perfeccionista e gosta de pôr os retoques técnicos nas fotografias que tira a mini-manequins nem sempre na pose perfeita para um catálogo de moda.

 

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Pensei que devia evitar a pergunta, porque a resposta seria óbvia, mas foi mais forte do que eu. Afinal, o bichinho curioso dentro de mim queria saber se já tirou “aquela” fotografia, se já houve o momento, o tal que a marcou. A nega saiu mais rápido do que o disparo de uma fotografia.

Assumiu que gosta mesmo é de tirar fotografias a crianças, as paisagens não são para a sua lente. Gosta de fotografar famílias, mas apesar de gostar do preto e branco não vai tão longe como aquelas com tons sépia que, provoco, incluem o cão aos pés do dono e o patriarca sentado com todos de pé à sua volta. A explicação técnica para as fotos a preto e branco está no facto de concentrar na expressão das pessoas e não na saia vermelha ou no casaco xadrez.

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Na pós-produção que faz em casa, instintivamente, escolhe o resultado quando a foto sobrevive à triagem que manda para o lixo todas as outras. Sabe se vai ser a cores ou não. E repete: «vou muito pelo instinto». Apesar de a explicação que me deu, depois, ser a da outra mulher que vive dentro dela, pois conta que «por causa da dislexia do meu filho, li muito sobre neurobiologia e descobri melhor como o nosso cérebro funciona». O seu lado biólogo diz que «a informação visual é lida mais rapidamente do que a verbal». E essa parte, admite, é mais importante do que a técnica da fotógrafa. No entanto, perfeito mesmo, «é quando se consegue conciliar tudo».

Em suma, «a espontaneidade do momento e o olho clínico que descobre o que o olhar da pessoa quer transmitir, é muito mais interessante do que uma fotografia tecnicamente perfeita, sem alma e que não mexe connosco». E isso sabem as pessoas que cada vez mais a procuram, para eternizar aqueles pequenos momentos que só uma fotógrafa com emoções sabe captar.

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A artista dos calhaus

By Gente que Marca 4.469 Comments

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Entrei no edifício cinzento que cruza a Rua dos Netos com a Rua dos Ferreiros, no Funchal e depressa me perdi entre os calhaus que se espraiam pelo chão do piso térreo. Sei que a designer portuguesa habituada a frequentar os palcos das conferências do famoso Ted está à minha espera, mas ao mesmo tempo deixa recado que não quer que eu faça muitas perguntas. O seu tempo, naquele dia como em todos os outros, conta-se em segundos loucos e não em horas pachorrentas, porque não tem tempo para perder tempo.

O seu tempo, no momento em que subo a escada alcatifada bordada por um corrimão de balaústres de madeira pintados de branco, é para se sentar no open space que no piso superior do edifício cinza escuro recebe diariamente quinze pessoas divididas por diversas áreas.

É dali que saem as suas criações, que são materializados os seus planos, é ali que a equipa, agrupada em sectores, é supervisionada. Não há nada que saia daqueles computadores sem passar pelos olhos claros atrás dos óculos de aro preto, como a roupa que veste quando não escolhe o branco.

Podia pensar-se que a sua vida não tem cor, que a sua vida, desde que disse a primeira palavra, Nini, não tem flores, ou padrões, mas Nini Andrade Silva, que não se lembra que se chama Isabel, tem muito mais do que isso. Nem sempre mostra, porque também não é fácil poder vê-la. Passa a maior parte do tempo enfiada em aviões de um continente para o outro, atrás do sonho que teve quando nasceu, há 54 anos, porque sempre quis ser a mulher intemporal que é hoje. E deve ser por isso que diz a sua idade acompanhada de um sorriso.

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De vez em quando levanta a cabeça atrás de um computador e responde a uma pergunta feita do outro lado da sala. Controla tudo, esteja onde estiver e mais tarde vou perceber isso quando, finalmente, a conseguir sentar dez minutos na mesa de trabalho que se funde e se confunde com a loja onde entram os turistas à sua procura.

Fiquei por ali, quase transparente, a vê-la decidir um e outro ponto, só proibida de fotografar os trabalhos do futuro Savoy. Desci ao piso inferior, onde os calhaus continuavam por todo o lado. Em colares, pulseiras, em sofás, em cadeiras de jardim. Senti-me em casa, De tal forma que dali a pouco, quando Nini desceu, veio ao meu encontro explicar um ou outro pormenor do que eu vira. Pedir-me que esperasse um pouco, mais um pouco, porque tinha de resolver uma ou duas coisas, antes do avião do dia seguinte.

Desapareceu atrás da cortina púrpura que divide o seu posto de trabalho e o resto da loja e ouvi-a a espaços, ao telefone e a falar para quem descia as escadas alcatifadas, bordadas com um corrimão de balaústres brancos. Parece reconhecer pelos passos quem desce e quem sobe.

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Finalmente, a mulher intemporal chama-me para perto dela. Tem aqueles milagrosos minutos para falarmos da sua vida, aquela que se traça numa linha recta desde sempre. A sua imagem de marca, como o é a roupa preta ou a roupa branca. Nem mais. Pergunto logo qual a ligação e a resposta, como quem não quer perder tempo, porque dali a pouco passa alguém nas escadas para cima e precisa, certamente, de lhe fazer uma pergunta, sai mais depressa do que penso.

Conta que se estiver de preto, calça uns ténis e vai para a praia e que se estiver com sapatos altos e uma écharpe, vai a um jantar, exatamente com as mesmas calças e a mesma túnica. O mesmo se passa com o branco. E, como anda permanentemente a mudar de lugar, se estiver frio veste preto, se estiver calor veste branco. Simples.

Sorri com os olhos. Os olhos que visualizam os hotéis que decora por todo o mundo, que já lhe valeram os mais cobiçados prémios internacionais de design. Sorri com as mãos que criam as peças de arte que a identificam em todo o planeta. Que seguram as vidas de perto de uma centena de pessoas que directa ou indirectamente dependem do seu sucesso. Há salários para pagar todos os meses e, explica-me, se não criar para ser boa naquilo que faz, não tem as encomendas que lhe permitem pagar as contas. Nesse momento volta à explicação cromática para me dizer que se estiver vestida de cores ou padrões com flores, por exemplo, não consegue criar as peças, a sua cabeça só vai produzir flores e desenhos com cores da roupa, porque, diz quem sabe, incomoda. Nem argumento.

Nini tem uma máxima de vida que lhe recordo. Ouvi-a falar dela uma vez há muitos anos e nunca mais me esqueci: “Para trás, nem para tomar balanço”. Sorri. De repente, vira-se para o lado da cortina e pergunta: “o Américo está aí?” Perco-me. Talvez se tenha lembrado de pedir alguma coisa, a sua cabeça trabalha ao segundo e acho que naquele exacto momento se tinha lembrado de algo. O Américo surge do outro lado do pano púrpura. E Nini apresenta-me o venezuelano que lhe disse a frase da primeira vez. Repete-a em castelhano. Sorri e volta ao trabalho. Afinal, a frase célebre não é sua, mas podia. O seu percurso tem sido uma linha em frente, cada vez mais distante dos primeiros anos, mas sempre com a Madeira como porto seguro. É aqui que se sente em casa, numa vida cheia de truques que fazem pequenas magias. Como o hábito de ter sempre o mesmo quarto quando repete estadas em hotéis, para se sentir um pouco mais identificada com cada um deles. O que não é difícil, porque cada vez mais a designer tem hotéis e prémios espalhados pelos vários continentes. E não tem nenhum de que goste mais do que o outro, todos os trabalhos são especiais, como se fossem os filhos que nunca teve.

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Quer fazer coisas antes de “ir embora”, conforme diz. Sem querer explicar o que isso é, mas a contar que as pessoas lhe agradecem na rua a força e a inspiração que lhes dá. Como se prepara para fazer, este mês, em conferências do Ted em Budapeste. Tal como fez em Kuala Lumpur, Malásia. Pedem-lhe que faça palestras pelo mundo. E dá-se por satisfeita se conseguir passar a palavra a uma única pessoa da plateia. É de choro fácil. Não é insensível como um calhau, atrevo-me a dizer, para ouvir logo depois da sua boca que um calhau é uma vida. A vida das praias, dos miúdos que ali corriam, que mergulhavam para os barcos, para ir apanhar moedas, o calhau é um mundo, ensina-me. Sem termos falado sequer da sua “Garota do Calhau”.

«Sou a junção das pessoas que andaram e andam pela minha vida». Sorri. «Não fiz nada sozinha e o meu nome já não sou eu». É uma marca.

Gosta de fazer acontecer. De fazer sonhar. Faz palestras, se for preciso, às dez da noite e gosta de transmitir a sua energia a alguém. Porque as pessoas merecem. Seja a que horas for.

Fala do Design Centre. Dos prémios que ali se mostram e das peças, as primeiras de cada colecção que hoje em dia estão espalhadas pelo mundo. É uma homenagem a todas as pessoas que trabalharam consigo, aos pais, que a deixaram ser designer e uma forma de as pessoas acreditarem nas profissões futuras. Porque há 30 anos ter essa profissão na Madeira era uma utopia.

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Recosto-me na cadeira, cada vez mais curiosa com a data em cima da mesa. Antes que lhe pergunte, dispara com uma daquelas suas máximas de vida. Não gosta de ver gente aborrecida, porque quando sai de casa, todos os dias, não sabe se vai voltar, por isso vive todos os dias como se fosse o último. Pede que não se ocupe a cabeça com coisas que não interessam.

Não tem um momento marcante na sua vida. Reconhece cada peça sua, sabe todas onde estão, seja em Miami ou no Dubai, na Colômbia, país pelo qual se apaixonou depois de, num primeiro momento ter recusado um convite de trabalho para visitar. Mandou até recado para ao casal de empresários que, se quisessem, viessem à Madeira falar com ela. Sorri. «Entraram-me no escritório pouco tempo depois a dizer-me que tinham vindo buscar-me para ir com eles». Ficou sem argumentos. Assim, como quem sabe que não me conta nada de novo, olha para a mesa de trabalho e diz, em tom mais baixo. «Fiz esse hotel maravilhoso, que ganhou o prémio de melhor hotel das Américas, o Hotel Bog. A partir daí convidaram-me para outros. Já lá tenho oito». Num país onde jurou nunca pôr os pés e que hoje sente que é a sua segunda casa.

«Tenho o mundo na cabeça». Sorri de novo. Antes de eu lhe dizer que apesar de transportar os seus trabalhos à escala planetária na cabeça, o seu coração é do Porto Santo. Agora vejo-lhe a alma nos lábios, quando admite que «não o troco por nada».

Aí, porque a curiosidade enche-me o corpo, atrevo-me a olhar de novo para a data escrita com caneta branca numa esquina da mesa e pergunto o que aconteceu no dia 20 de Outubro de 2016. Nini olha-me com surpresa e aponto os algarismos debaixo do seu cotovelo. Nessa altura, esboça uma gargalhada e responde, afastando as dezenas de papéis e de amostras de tecido que cobrem o resto do tampo castanho. Encolhe os ombros e revela: nada, foi o dia em que achei que esta mesa, que estava um pouco riscada, precisava de algo novo e chamei o pessoal aqui do piso de cima e da loja para fazerem o que quisessem. Cada um desenhou um pouco. «Ficou linda, uma peça de design, sem precisarmos de gastar dinheiro a reformá-la». Depois, puseram a data.

Encontro, então, uma líder. Não a chefe. Todos os colaboradores sabem. Diz que não é chata, mas assume-se exigente. Sobretudo amiga. «Não sou mais do que ninguém aqui dentro, somos todos iguais. Uma equipa, não há pirâmides”. Há a tal linha, digo eu. Sim, “mas alguém tem de tomar uma decisão”, admite.

De sorriso na cara, recosta-se na cadeira. Tem energia para dar e vender todos os dias. Ficou por algum tempo descontraída, mas depressa voltou ao ritmo normal de querer aproveitar o tempo que lhe restava no seu cantinho. Para preparar os cantinhos que oferece, em todo o mundo.

 

Nini quer assinar edifícios de luxo

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nini-722A designer Nini Andrade Silva quer começar a assinar edifícios. Num mundo em que os hotéis a que deu o nome no design já assumiram uma imagem de marca que a tornaram inconfundível e depois de ter conquistado a crítica, a designer madeirense conhecida pela sua ligação aos calhaus das nossas praias – que se tornaram o seu cartão de visita – assume que o próximo passo é de gigante.

Nini admitiu ao “Madeira In  Out”, numa conversa recente, que chegou a fase de fazer algo de novo e daí surgiu a ideia de criar habitação de luxo com edifícios «designed by “Nini Andrade Silva”». Quer fazer coisas novas na vida. E este é o seu novo objectivo. «Tenho de ter alguma coisa nova a acontecer». A sustentar a frase, contou uma história que leu em criança, a de uma senhora idosa, sentada numa cadeira a ver a vida passar e a pensar quantos dias tinha perdido na vida e que lhe faziam tanta falta naquele momento. Temos um crédito de tempo para gastar e não o quer perder em coisas mal aplicadas. Por isso não perde tempo com o diz que disse e está neste momento à procura de investidores.

A designer portuguesa premiada em todo o mundo pelos seus trabalhos e convidada para dar conferências em todos os continentes, recebeu-nos numa das suas passagens pela cidade que a viu nascer há 54 anos. O resultado desses bocadinhos de tarde onde descobri o lado humano da conhecida profissional poderá ser visto aqui, ainda esta semana, na rubrica “Gente que Marca”.

Porto Santo num sabonete de areia medicinal

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O João “das Pedras ou das Rochas”, ou João “das Areias” ou o João “da Madeira”, neste caso se estiver em Aveiro, é como geralmente as pessoas tratam um madeirense que estuda e promove o turismo de saúde, médico e de bem estar.

A história até podia ficar por aqui se não fosse o facto de o João Baptista para quem o conhece antes da licenciatura, ter agarrado recentemente em mel de abelhas biológico da Laurissilva de São Vicente e formulado e enfrascado o néctar para ser vendido em protectores solares, loções de corpo e afins. É esta uma das facetas do homem que já tem patenteados sabonetes com pevides de maracujá, resíduos de cana de açúcar e grainha e engaço de várias castas de Vinho Madeira. Confesso que experimentei a loção corporal da Terramiga e que me rendi ao aroma e à textura. Não fiquei, por isso, surpreendida quando descobri a sua ligação à geomedicina ou geologia médica. Mas essa areia é de outra engrenagem. Hoje, falamos dos primeiros sabonetes esfoliantes do mundo feitos com o ingrediente da areia carbonatada biogénica.

Nascido em Santo António há 47 anos, o João “das Pedras” tem vindo a aprofundar, com uma equipa de cerca de 14 investigadores de que faz parte desde 2006 na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto e da Universidade de Aveiro, as suas ligações à área da geofarmácia, desenvolvendo projectos de investigação científica aplicada. O nome é pomposo, mas o resultado é simples.

Hoje, falar de provas quando se toca em talassoterapia, é falar das areias terapêuticas e medicinais do Porto Santo. De crónicas do médico Nuno Silvestre Teixeira, que em 1924 já apontavam para as suas potencialidades, dos nórdicos que ao longo de décadas se refugiaram na ilha para curar maleitas musculares e esqueléticas.

Tratamentos com areias, argilas e água do mar foram se tornando conhecidos e tornando famosa, por consequência, a ilha. A fama já assentou arraiais em Portugal e no norte da Europa e os últimos invernos têm tido uma procura cada vez maior de turistas.

João é um conhecedor profundo do potencial dos recursos naturais do Porto Santo para fins do turismo de saúde e do bem estar. Estudou-o, escavou profundamente o que poderia ser feito e sacou das águas azul turquesa o que de melhor havia.

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A linha de sabonetes do Terramiga, que se encontra à venda em vários pontos de referência, é a cereja no topo do bolo de um projecto de investigação que nos é oferecido em caixa branca, com três réplicas de calhau rolado dentro e três tonalidades de azul que nos transportam rapidamente para as diferentes tonalidades do oceano atlântico na baía da ilha dourada.

O aparecimento recente da marca Porto Santo veio confirmar que as águas do mar, naquelas condições, são soberbas e, mais do que isso, incomparáveis. A explicação científica confirma o tal bronzeado cor de chocolate ganho naquela praia e água à custa do iodo, que não se encontra em nenhum outro ponto do globo em tão excelente estado. E isto não é golpe publicitário. Há provas cabais dessas características espalhadas em cada vez mais peles por essa Europa acima. E isso, explica o engenheiro geólogo, aliado às potencialidades da areia, oferece umas férias difíceis de encontrar em qualquer outra praia. Mas os investigadores não se ficaram por aqui. Esmiuçaram os pontos fortes da argila, a tal que era desfeita em copos de água do Porto Santo e bebida para minimizar patologias do aparelho digestivo.

A esta altura, atrevo-me a falar em Porto Santo Detox. Porque aliado a tudo isto, há o sabor único da fruta e dos legumes, que crescem em areias calcárias e que se consomem cruas ou transformam em sumos e sopas incomparavelmente mais saborosas do que quaisquer outras (devido aos teores do cálcio, magnésio e estrôncio).

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Há evidências técnicas, científicas e clínicas das ofertas encontradas naqueles 42 quilómetros quadrados de estância singular de saúde natural. E, grosso modo, explicam-se assim: temperaturas da água do mar de 24 graus, humidade relativa entre os 70 e os 80%, temperaturas do ar entre os 28 e os 30 graus, temperatura da areia que pode atingir os 65 graus.

Já fez as malas? Não se esqueça dos protectores solares e da linha de corpo da marca nascida a partir das areias da ilha. Aventure-se à descoberta do que ainda desconhece do Porto Santo e envolva-se na areia da praia da joia mais antiga… porque os segredos são para desvendar e aproveitar.

Chef Octávio – O empresário que cozinha a Madeira

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chef%2B1.jpgQuando a professora do 9º ano na Escola do Estreito de Câmara de Lobos perguntou que queria ser, o jovem Octávio Freitas respondeu, sem pestanejar, que queria ser cozinheiro.

Entre as gargalhadas dos futuros engenheiros e médicos, advogados e afins e o espanto da diretora de turma, o jovem aluno, filho da melhor cozinheira do mundo, como diz, manteve o seu sonho e começou ali temperar os anos seguintes, que o trariam ao glorioso ano de 2016, quando a vida lhe corre bem, quando os seus pratos já são uma marca registada para saborear com o seu vinho, o tal que anuncia apenas as iniciais Of no rótulo sóbrio e distinto.

Hoje, quase vinte anos depois daquele Outubro de 1997, quando iniciou a profissão, ainda se recorda daquele dia por dois motivos. Pela capacidade que teve de focar o seu objetivo e por não ter esquecido as caras de escárnio dentro da sala de aula.
A vida sorriu-lhe através de uma família dita normal, como brinca, um casal médio, com filhos, com o pai a continuar ainda hoje a ser taxista e a mãe a fazer os melhores cozinhados do mundo, frisa.

O Chef, porque hoje é assim que é conhecido, tem nome e marca registada em todos os pontos da ilha e reconhecem-lhe a capacidade de deixar o seu tempero na juventude atual. Jovens pouco mais velhos do que ele, que quando tinha doze anos, decidiu que esta seria a sua forma de vida. Uma estranha forma de vida, diriam alguns, algures na segunda metade dos anos 90. Talvez porque o pai sempre teve hortas caseiras, cultivava o que comiam em casa, criava animais para o sustento da família e gostava da tal ligação a terra que o filho tanto reconhece, agora.
«É da terra que nasce o prato», sentencia, gesticulando como se tivesse entre os dedos qualquer legume colhido lá na horta do pai. É preciso percebermos a natureza das coisas, ensina.

chef%2B2.jpgAinda com idade para andar a jogar à bola na rua transformada em campo de futebol, o rapaz que cresceu a conhecer todo o tipo de colegas começou a perguntar onde poderia ter aulas de cozinha. «Era um bom aluno, não fui para a cozinha por escape», não havia quem quisesse descascar batatas e fazer espetadas para turistas.

Como não foi um mau estudante, podia ter sido qualquer outra coisa, mas decidiu que queria criar. Na altura, não foi difícil, porque as vagas para cursos de cozinha na Escola de Hotelaria e Turismo da Madeira eram mais do que muitas. Agora, há excedente de alunos a querer experimentar texturas, sabores e condimentos. É preciso filtrar os candidatos.

Teve sempre apoio em casa. Ninguém o dissuadiu ou tentou demover, mesmo que tivesse quinze anos quando entregou os papéis para a candidatura e que em Outubro de 1997 tivesse já os 16 anos completos na primeira aula.

«Parece que encarnei outra pessoa, tinha o mesmo foco que tenho hoje e sabia, como sei agora, exatamente o que queria».

Começou a trabalhar muito cedo. No primeiro mês de aulas deu tanto nas vistas que foi convidado para estagiar num restaurante. Assim, com 16 anos, estudava das 8 às seis da tarde e entrava no “D. Amélia” das 19 à uma da madrugada seguinte.

Fez isto durante três anos, nos dias de semana, mas os sábados e domingos eram passados enfiado no restaurante. Foi por capacidade e não por qualquer golpe de sorte que fez, por isso, a travessia meteórica diretamente para cozinheiro de 1ª categoria, saltando as de 3ª e 2ª.
O Chef Amândio, um dos grandes mestres da nova vaga da cozinha madeirense não o deixou fugir da sua alçada, quando Octávio acabou o curso. Aos 19 anos, era subchefe de cozinha e braço direito do conceituado chef, que se formara na Suíça. Houve quem apostasse que não demorava uma semana. O mais velho era um homem exigente, o que era muitas vezes confundido com mau feitio e juntou-se, atrevo-me a dizer, a fome com a vontade de comer. Octávio concorda. Sabe que o bom feitio não é propriamente a sua imagem de marca, mas prefere chamar-lhe, agora, exigência, quase perfecionismo.

Alguns anos depois, depois de passadas várias cozinhas de hotéis e restaurantes, não esquece que aos 21 anos abriu a Quinta do Jardim da Serra como chef.

chef3-1Talvez por ter dado o seu primeiro curso de cozinha aos 18 anos, ainda o diploma da Escola Hoteleira cheirava a tinta, ficou com vontade de partilhar. Hoje, tem quase 200 alunos em dezena e meia de escolas, reconhecendo que o seu trabalho foi responsável pela paixão desenvolvida por muitos miúdos. Por um programa de televisão, de rádio, de uma sensibilização feita numa escola… por qualquer razão. Mas ela existe e pega-se, como o aroma das suas receitas.

A formação que dá na Of – Escola de formação, aparece por querer devolver o que aprendeu à terra que o viu nascer. Mas quanto aos 40 anos, quando lhe pergunto onde vai estar, Octávio não mergulha em futurologia. Só sabe que não quer defraudar as expetativas dos que confiaram em si. Mas também sabe que se quer superar, todos os dias.

Não sabe se a Madeira vai ficar pequena para si, mas sabe que das viagens que fez, a título pessoal ou profissional, houve coisas que o fascinaram e outras que nem por isso, atrevendo-se mesmo a dizer que «somos um exemplo de hotelaria para muitos países».

Recentemente, esteve pelo segundo ano consecutivo na Polónia, a representar Portugal e gosta de viajar, sendo convidado diversas vezes por ano para participar em eventos no continente, assim como se estivesse a tocar piano a quatro mãos, mas na versão gastronómica.

Pergunto-lhe qual foi a cereja no topo do bolo nas suas criações. Pensa um pouco e atira com um olhar distante, como se no horizonte estivesse a resposta. «Já criei pratos que pensei que iam ser um sucesso e não foram» e outros, «feitos sem grandes improvisos ou expetativas, acabam por ter uma história». Houve alguns que criou e desapareceram das suas ementas e outros que, temperados com o seu estado de espírito em dada altura da vida, o marcaram. Houve um, particularmente, que faz com que até hoje as pessoas o procurem: «um bacalhau fumado, que apresentou numa “Essência do Vinho” e que o levou inclusivamente ao Porto». A especialidade? É fumado em farelo de barricas de Vinho Madeira.

Hoje, já não é opção trabalhar com produtos regionais. É uma exigência. Uma cobrança que faz a si próprio, porque se não o fizer, as pessoas fazem. Sem cerimónias. Sabe que teria sido mais fácil brilhar com produtos como lagosta e caviar, porque é fácil brilhar com pratos caros, mas quando a magia nasce da cavala, do atum ou das ovas de espada, é preciso arte. E passados quase vinte anos, continua a ser uma certeza das suas cartas.

A paternidade levou-o a ser mais condescendente e hoje, reconhece, o feitio pouco flexível está mais mole. Dá segundas, terceiras e mesmo quartas oportunidades, mas sabe que houve tempos em que terminava na primeira.

Quando a conversa vai caminhando para a sobremesa, ainda avanço com a colheita de vinho. É uma paixão antiga a tal mestria de fazer o néctar. «Não gostava de beber, mas adorava entender o percurso, a fermentação das uvas, as harmonias, porque é que se acompanha com vinho branco um prato ou outro». Aos 18 anos, fez uma formação em enologia e a partir dali tomou-lhe o gosto. «Tenho prazer nisso». Mas recusa, quando provoco, que o Vinho Madeira seja para molhos, como muitos colegas de profissão por esse mundo fora.

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Um dia, quis fazer um vinho.

Porque se a sua vida é criar com o que a terra dá, mais do que nunca, era hora de o fazer aliado às formações que teve. Em conversa com um enólogo, cozinhou uma ida ao Alentejo para criar o seu “blend”, a mistura das várias castas que escolheu e criou a sua própria marca, a Of, que se transformou em 15 mil garrafas de branco e outras tantas de tinto. Todo ele vendido em 2012, mas dali saiu também um lote especial, de 1500 garrafas de reserva e depois chegou ao auge de criar um Vinho do Porto com o seu nome. «O único Vinho do Porto feito por um madeirense». Ainda quer fazer o mesmo com castas nossas.

Mas tudo a seu tempo. Como tem sido tudo na sua vida. Para saborear, acompanhada de um bom prato.

O Homem do Leme

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«Hoje, vejo as crianças que conheci com os filhos ao colo, já casadas».
De facto, 20 anos aos comandos do navio e outros dois na linha, fazem de João Vicente da Cruz Bela uma das pessoas que melhor conhece a ilha dourada e as pessoas que por lá passam.

Não há quem não conheça o comandante. Não há quem desconheça a sua simpatia e verticalidade, a sua determinação e profissionalismo, nada que não tivesse sido imagem de marca do homem de calça preta, camisa branca e galões dourados que conhece o navio que hoje governa da mesma forma que conheceu o anterior, trazido da Grécia.

IMG_9099-3O atual Lobo Marinho é como um filho, porque o viu nascer, pouco a pouco, na Rússia, na Alemanha, no norte de Portugal. Ganhar forma, crescer e juntar as partes que hoje alisam as águas da travessa em viagens quase diárias, em percursos que poderia fazer de olhos fechados, mas não faz. No mar, nunca se facilita. É sempre como se fosse o primeiro dia, ensinou ao longo destes anos.

O comandante João Bela é neste momento uma autoridade para falar na matéria de vinte anos de linha marítima ininterrupta. Porque a viveu e a aprendeu como ninguém.
Quanto à ilha onde passa o dia, «mudou quase tudo, desde logo o nível de vida, que se alterou
significativamente».

Criou-se uma riqueza que até então o Porto Santo não tinha. Aumentou o movimento de turistas, mas com a facilidade de transporte, as pessoas da Madeira começaram a perceber que tinham fortes vantagens em ter uma casa no Porto Santo. Hoje, pode dizer-se que este homem viu a ilha crescer, as construções que se multiplicaram quase três vezes em relação a 1996, a própria iluminação da ilha hoje é seguramente seis vezes superior à que existia. Diz quem conhece. Quem todos os dias tem o privilégio de ver a costa sul a partir do mar e pode assinar as palavras.

As poucas pessoas da Madeira que tinham casa no Porto Santo antes de 1996, decoravam-na com aquilo que já não queriam na residência habitual. Hoje, compara o comandante, «toda essa norma foi alterada, hoje há casas no Porto Santo iguais às do Funchal e pessoas estrangeiras, como angolanos e alemães, a fazerem casas na ilha dourada.

 

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As poucas lojas que existem, apesar da crise, já têm coisas apetecíveis para comprar. Em 1994 e 1995, quando ainda viajava no catamaran Pátria e no Lady of Mann, o ferry-boat que veio à experiência para a linha, os espaços comerciais tinham pouco mais do que as prateleiras.

Os próprios táxis, eram carros velhos e alguns deles mal tratados e as pessoas tinham dificuldade em relacionar-se com os turistas, hoje há viaturas novas, bem cuidadas e até empresas de transferes e passeios turísticos bem feitos.

A introdução dos ferries no Porto Santo virou a economia local. «E há muitas famílias que viajam connosco que continuam a investir, mesmo em habitações para arrendar no Verão».

A ilha virou moda, sim. É um facto. João Bela, que por via da profissão conheceu muitos destinos turísticos e pode falar com conhecimento de causa, refere que além das figuras públicas que se sabe que ali têm casa, há outras que, não fazendo publicidade disso, mantêm o hábito de vir para o areal para as suas habitações de férias.
Ainda podemos ter esperança nos dias que vêm. O Porto Santo pode tornar-se numa pérola neste Atlântico, por continuar a ser uma zona de tranquilidade e paz. É a única praia da Europa com areia calcária e quem se preocupa com essas questões, acaba por ter ali a sua escolha natural.

A ilha tem qualidades e condições para receber, fora de Julho e Agosto, turistas de várias origens, há ainda dez meses para explorar. As Canárias, por exemplo, têm contratos com operadores que trazem funcionários afetos a sindicatos, reformados e outros e essa, alerta, poderia ser uma saída para potenciar o turismo em alturas do ano em que os nórdicos, decididamente, não farão praia nos seus países.

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Em vinte anos, contudo, não viu acontecer uma coisa que poderia ser simples, mas que parece uma obra extremamente difícil. Hoje em dia até brinca com isso, mas a verdade é que, excetuando a Praia da Fontinha, toda a extensão de praia que existe ao longo de nove quilómetros não tem infraestruturas públicas de apoio. «Estou a falar de uns simples balneários com casas de banho». Porque nas zonas que não aquela paralela ao Hotel Torre Praia, só os investidores privados têm serviços desses, interditos aos turistas em geral.

Criar estruturas no areal para os locais e os visitantes se sentirem confortáveis é simples. Haja vontade.
Esse era um desejo para ver concretizado nos próximos anos. O outro, era continuar a ver a ilha sem semáforos, não a descaraterizando, mas sobretudo, queria poder ver continuar a melhorar o serviço na ilha, que não tem a tradição turística da Madeira, mas que irá certamente encontrar o seu rumo. Por outro lado, quer continuar a poder comer lambecas, os tradicionais gelados da ilha que não são imitáveis em parte nenhuma.

Ao fim de vinte anos, o comandante olha para trás e reconhece que fez muitos conhecidos. Não acredita que tenha feito inimigos. No Porto Santo, a ilha onde passa o dia, que sente quase sua, continua a gostar de saborear as tardes de brisa fresca como se fosse o primeiro dia.